A seleção da Holanda (ou Cidadão Kane)

O Brasil era favorito, acabara de se sagrar tri-campeão mundial na Copa de 70. O melhor jogador da história já se aposentara, mas Rivelino e Jairzinho ainda estavam em grande forma. Começamos mal, mas nos achamos no hexagonal graças aos camisas 10 e 7. Só que, no caminho do tetra em 1974, tinha uma laranja. Ou melhor, várias, um carrossel.

Numa partida pra lá de violenta, caímos. Jogo equilibrado no primeiro tempo. Leão com duas defesas maravilhosas e Jairzinho quase achando um gol. O segundo tempo começa e, aos 9 minutos, numa bobeada da zaga, Neeskens dá um carrinho para alcançar o passe de Cruyff e encobre Leão. 1 a 0.

Assim como nas suas partidas anteriores da Copa da Alemanha Ocidental, cozinharam o jogo. Toca daqui, toca dali, uma infiltração aqui, uma ultrapassagem acolá e, pimba, segundo gol, desta vez de Cruyff. Ficamos em segundo no hexagonal (não havia semifinal, os finalistas eram definidos pelos primeiros colocados do Grupo A e B) e fomos disputar o terceiro lugar.

A Holanda não ganhou o título, iniciando em 74 sua longa tradição de, a despeito do tom laranja, amarelar nas horas decisivas. Mas também se iniciava o reconhecimento mundial do estilo de futebol apelidado de “carrossel holandês”.

Movimentação constante, jogadores sem posição fixa (Cruyff ora buscava o jogo na intermediária defensiva, ora cabeceava como centroavante), ultrapassagem dos laterais, chegada dos homens de trás, exímia linha de impedimento. Um conjunto de fatores que mudou o futebol nos anos 70, mas que hoje fazem parte do bê-á-bá futebolístico.

Qual lateral que em 2011 não faz uma ultrapassagem? E os volantes, os tais jogadores modernos, com a função de marcar e chegar ao ataque? E a linha ofensiva que precisa se movimentar para confundir a marcação dos defensores? No Século 21, estas são posturas obrigatórias, mas que já foram inovações um dia. Se observadas por um olhar anacrônico, fica até difícil enxergar a revolução.

Aí entra Cidadão Kane. Qual jovem cinéfilo não ouviu que a obra-prima de Orson Welles era fenomenal e decidiu assistir, mas pouco enxergou de diferente no filme? Quantos foram com sede ao pote, mas pouco conseguiram beber?

Aí está o tendão de Aquiles quando visitamos clássicos, seja no futebol ou no cinema, de épocas que não vivemos: o anacronismo. Um cinéfilo não pode se permitir este tipo de equívoco, sob o preço de perder o sabor de apreciar um filme revolucionário. Muito da narrativa cinematográfica que Welles preconizou tornou-se arroz com feijão de um diretor contemporâneo. Por isso, é preciso perspectiva histórica e conhecimento do contexto.

São dois detalhes que ajudam passar longe de outros dois deslizes: não enxergar os porquês de um clássico (clássico mesmo, não no uso borra-botas e arroz de festa da definição) ter chegado a esse status e afirmar que certos filmes são revolucionários ou originais, sem reconhecer seus avós.

Mas… se formos adiante entraremos na discussão da originalidade, o papo é longo e previro deixar nas mãos de quem é gênio, Abbas Kiarostami, e o lindo Cópia Fiel.

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