A política ao redor*

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A estreia de O Som ao Redor no circuito brasileiro em 4 de janeiro, após uma frutífera temporada de premiações em festivais nacionais e internacionais, abre o corredor para o acesso a um conjunto de filmes contemporâneos que fazem um embate com questões atuais buscando códigos contemporâneas de linguagem. Um cinema que tenta responder e reagir ao seu tempo sendo político, mas indo muito além do panfleto.

Falsa cordialidade, desnível nas relações de trabalho, especulação imobiliária e processo desenfreado de verticalização das cidades, violência do Estado, alastramento da cultura do medo, esvaziamento do espaço público, investigação da classe média e dos novos ricos, pressão do capital contra o pequeno agricultor, esquizofrenia nos processos históricos brasileiros são alguns dos assuntos que atravessam uma cartela de filmes contemporâneos. Propostas e abordagens que formam uma partitura diversa.

Seria um equívoco colocá-los sob um mesmo guarda-chuva, ignorando suas particularidades. O que se pode afirmar com tranquilidade é que estamos vivendo um momento especial: existe um conjunto de filmes que cutucam, questionam e provocam, olhando de frente vicissitudes brasileiras, mas também estão preocupados em contar suas histórias de outras maneiras.

O grosso desses filmes representa um deslocamento de eixo histórico. Para ser político, o cinema brasileiro tradicionalmente tomou a favela ou o sertão como o lugar mítico do embate, chave na qual transita o Cinema Novo. O que a produção contemporânea tem feito é mudar a paisagem e o corte de classe. Distancia-se da tradição catequizante e didática e já não se sente a necessidade de fazer pit stop em Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos para falar do presente, apontar as vicissitudes, questionar problemas estruturais.

Se a cena cinematográfica das duas últimas décadas tinha em Lúcia Murat (Quase Dois Irmãos, Uma Longa Viagem) e Sergio Bianchi (Cronicamente Inviável, Quanto Vale ou É por Quilo?) diretores voltados à discussão do Brasil, recentemente eles tem recebido a companhia de filmes e realizadores mais dispostos ao risco e à invenção – ainda que as dificuldades de circulação do cinema brasileiro sem incentivo da Globo Filmes limitem a reverberação de suas afirmações para um público maior.

A rua e o engenho

O cotidiano numa rua em Boa Viagem, bairro de classe média no Recife, é cenário de O Som ao Redor. O clima de aparente harmonia social começa a sofrer rachaduras com a chegada de uma empresa de segurança particular – que incute o medo para, então, “curá-lo”. Aos poucos o bueiro da cordialidade vai sendo destampado, revelando, assim, peças-chave dos processos de formação brasileiro e de seu desenho contemporâneo.

Por exemplo, o alastramento da cultura do medo, que se reflete no enclausuramento em condomínios como promessa de segurança. Grades, muros altos, câmeras de vigilância, privatização da segurança estão no subtexto do filme. Conforme o filme caminha, os personagens começam a ser tomados pela paranoia de que é preciso prestar bastante atenção porque algo está para acontecer. Sem a neurose coletiva não se vende a “segurança”.

Em vez da ilustração didática, o recurso que o longa de Kleber Mendonça Filho adota para alinhavar é incorporar o que o cinema de horror e de suspense oferece para criar tais relações. Um pesadelo com a invasão da casa, uma batida de carros inexplicada, uma cachoeira que se transforma em sangue são algumas das inserções. É possível perceber ecos de mestres do gênero, como Roman Polanski, em filmes como O Bebê de Rosemary e Repulsa ao Sexo. Deslocam-se gêneros cinematográficos tido como supérfluos, equivocadamente renegados ao segundo escalão, para um filme “sério”.

Aos poucos percebe-se que aquela rua de uma paisagem urbana e contemporânea de uma metrópole cosmopolita em O Som ao Redor emula a organização de engenhos de cana. Francisco (WJ Solha), dono de quase todos os edifícios e apartamentos da região, assemelha-se a um senhor de engenho acostumado a dispor de um sem número de vassalos e jagunços dispostos servi-lo, inclusive matando quem ameaçar seus interesses. Francisco nos abre o acesso ao que permanece do arcaico, do coronelismo e do ranço escravocrata. Não é muito difícil perceber que aquela rua é seu pequeno latifúndio.

Um personagem ficcional como ele poderia muito sem encontrado num documentário como Acercadacana (2010). O filme de Felipe Peres Calheiros mostra a luta de Maria Francisca, que resistiu à expulsão de 15 mil famílias, na Zona da Mata de Pernambuco, para a expansão do latifúndio canavieiro. É ao universo de trabalhadores como Dona Francisca que um coronel como Francisco pertence: daqueles que estão acostumados a coagir o trabalhador e a fazer acerto de contas à bala.

Brasília, uma ficção

Se em O Som ao Redor segue-se o rastro de um passado escravocrata que ainda reverbera, em A Cidade é uma Só? o assunto é a invenção de Brasília e o estrago social que ela provocou nas populações marginalizadas. Premiado na Mostra de Tiradentes 2012 como Melhor Filme, o longa-metragem de Adirley Queirós embaralha ficção e documentário ao relacionar três histórias de personagens vindos de Ceilândia: a de um faxineiro que se candidata a vereador, uma cantora que presenciou há quarenta anos a expulsão dos moradores pobres na capital federal durante a Campanha de Erradicação de Invasões e um micro-especulador imobiliário.

Três personagens que escancaram o processo de higienização que resultou na criação de Ceilândia, a equação de valorização e desvalorização da terra e distância da política partidária em relação ao cidadão comum. Que não se tenha a impressão, porém, de um tratado sociológico, um bê-á-bá cinematográfico: flerta-se com o pop, mas sem esvaziar o debate. Pois para falar de assuntos já remexidos e de um local como Brasília, constantemente celebrado como modelo, é preciso despertar o olhar do espectador, quebrar suas expectativas para chamar a atenção. É o que Queirós faz com A Cidade é uma Só? e pretende fazer com seu próximo longa-metragem, Branco Sai, Preto Fica, uma ficção científica ambientada em Ceilândia.

Quebrar as expectativas, falar de temas sérios com gêneros cinematográficos geralmente tido como supérfluos, é o que faz dois curtas-metragens: Recife Frio (2009), trabalho anterior de Mendonça Filho, e Praça Walt Disney (2011), de Renata Pinheiro e Sergio Oliveira. Ambos os filmes mostram-se políticos ao questionar um modelo de cidade que privilegia a verticalização e a especulação, esvaziando o espaço público.

O primeiro faz isso por meio de um falso documentário e da ficção científica: Recife, uma cidade tropical, repentinamente tornou-se fria, gélida. Por que? Já o filme de Pinheiro e Oliveira associam as imagens prosaicas de um endereço de Recife, sensivelmente alterado pela verticalização desenfreada, ao som de animações da Disney, criando microcosmos da sociedade brasileira. Uma cena despretensiosa como a da família que ocupa um pequeno pedaço do mar como se fosse uma piscina particular, pagando garotos pobres para jogar água no cercadinho, diz muito sobre a perpetuação de privilégios de classe, tão típicos da sociedade brasileira.

O trabalho e o lar

Um dos mais interessantes filmes da safra recente joga luz numa classe de trabalhadores que, apesar de ocupar um espaço simbólico, sofre para assegurar seus direitos. O documentário Doméstica (2012) escancara o quão complexas são as relações de cordialidade no mundo do trabalho, especialmente no lar.

Selecionado para o International Documentary Film Festival Amsterdam, principal vitrine no mundo para o cinema documental, o longa de Gabriel Mascaro é feito a partir de uma inversão: em vez de a equipe entrevistar patrões e empregados, todas as imagens são registradas pelos filhos dos donos das casas.

O próprio filtro nas filmagens, que passa pelos olhos de quem contrata a mão de obra, revela com mais ênfase uma certa organização de poder do que se fosse verbalizada. Todos os patrões afirmam que a empregada é quase da família, que se sensibilizam com seus dramas e histórias pessoais – alguns até concedem que ela se sente à mesa. Os filhos que registram as imagens ressaltam como ela por vezes faz o papel de mãe e ombro amigo.

Nas entrelinhas, porém, o teatro da ausência de conflitos é desmascarado. Apesar dos depoimentos ressaltarem como o trabalhador doméstico ocupa posição central no lar, nenhuma das sete empregadas é entrevistada pelos filhos dos patrões no espaço mais nobre da casa: a sala. Apesar de fazerem questão de dizer que “ela é quase da família”, todas dormem num quarto minúsculo e sem janelas (o quarto da empregada é uma reprodução moderna da senzala). Apesar de afirmarem compreender os dramas pessoais das empregadas, uma delas teve de permanecer em serviço na noite em que seu filho era assassinado.

Ao tirar da mão do diretor a primazia do registro da imagem e transferi-lo a quem vive diariamente o espaço do lar é que Doméstica torna-se o mais potente registro cinematográfico recente sobre o desnível das relações de trabalho no Brasil.

Saindo do registro documental, há outra fita que constrói com bastante precisão um retrato cru do mundo do trabalho: Trabalhar Cansa, que teve sua primeira exibição no Festival de Cannes e estreou no Brasil em 2011. Bebendo da tradição do cinema de horror tal como O Som ao Redor, o longa-metragem de Juliana Rojas e Marco Dutra mostra os estranhos eventos que acontecem numa família de classe média após a esposa abrir um mini-mercado simultaneamente à demissão do marido.

O estabelecimento parece mal assombrado: um estranho vazamento testa os nervos da esposa, que desconta nos funcionários, desfrutando do privilégio dos pequenos poderes. Enquanto isso, o marido, que já passou da faixa dos 40, busca um novo emprego. Enfrenta, porém, a concorrência da mão de obra mais jovem (e barata) e o sadismo, travestido de cordialidade, das entrevistas de emprego, das escusas disfarçadas. Seu urro de lobisomem no final, durante uma dinâmica de grupo, é um triste atestado da humilhação cotidiana do trabalhador, de sua impotência frente a uma estrutura alienante e voraz.

Documentários de urgência

Ao lado de um cinema que penetra com mais sofisticação em questões problemáticas no Brasil, por outro lado continua existindo uma produção documental mais direta e de urgência. Filmes que, grosso modo, colocam num plano inferior a experiência cinematográfica e priorizam a nobreza do tema.

Paralelo 10 (2011), de Silvio Da-Rin, mostra, a partir do sertanista, José Carlos Meirelles, como a questão indígena continua sendo uma pedra no sapato com a qual o poder público hesita em lidar. O mesmo com Mataram a Irmã Dorothy (2008), de Daniel Junge, que resgata o legado da missionária Dorothy Stang e aponta a câmera para a impunidade dos assassinos – a morte de lideranças é traço histórico da repressão contra a luta pela terra.

Saindo do cenário do campo e vindo para a cidade, outro documentário que destampa verdades estabelecidas é O Riso dos Outros, de Pedro Arantes. Entrevistando humoristas, cartunistas e ativistas, o filme explicita que a comédia não é um campo neutro, mas sim um lugar de tensões em que a escolha das palavras e os alvos do humor revelam uma teia de preconceitos e pré-conceitos. O longa de Arantes é um dos poucos a abordar frontalmente a homofobia.

Há ainda a investigação do rastro da ditadura, assunto sempre revisitado pela ficção ou documentário. Dois longas da produção recente se destacam: Margihella (2011), de Isa Grispum Ferraz, e Cidadão Boilesen (2009), de Chaim Litewski, melhor documentário da safra recente sobre o tema, que denuncia a participação de empresários, em especial Henning Albert Boilesen , na tortura de militantes.

Porém, o que o melhor do cinema político – adotando uma definição bastante estrita do termo – brasileiro contemporâneo tem nos mostrado é que a mais efetiva maneira de se inserir no presente é abandonar a tradição catequizante e didática que tanto marcou a produção brasileira. Abrir janelas, arejando filmes com misturas de gênero e derrubando fronteiras de linguagem é o que tem feito uma produção diposta a reagir a seu tempo.

*originalmente publicado na revista Caros Amigos em fevereiro de 2013.

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