Spike Lee, O Som ao Redor

Rever os primeiros filmes de Spke Lee tem sido um ótimo aquecimento para me colocar em ponto de bala para lidar com o cinema negro da década anterior nos Estados Unidos, o Blaxploitation, sobre o qual devo terminar, até o final deste ano, um livro de ensaios. Muitos dos (poucos) posts do blog até dezembro serão sobre o assunto. Espero que não se torne deveras enfadonho para os (poucos) leitores do blog.

Revi Faça a Coisa Certa (Do the right thing, 1989) uma semana depois de findadas as aulas do curso sobre cinema em Pernambuco. Uma pena pois seria mais um filme interessante para trazer para a conversa e compor um panorama possível de leitura das referências (intencionais ou não) de O Som ao Redor – ao lado de Repulsa ao Sexo (Polanski), A Névoa (Carpenter), Sob o Domínio do Medo (Peckinpah).

Tudo ali acontece em apenas um quarteirão do Brooklyn (diga-se: um Brooklyn com uma vida em comunidade muito distinta do espaço hipsterizado que ele se transformou – e do qual o time para o qual torço, os Nets, são a grande expressão com sua arena asséptica de… um milhão de dólares. Fim da digressão). Conhecemos os personagens coadjuvantes por meio do entregador de pizza Mookie, que atravessa o bairro no dia mais quente do ano, apresentando uma gama de personagens típicos da comunidade negra (ou melhor, do recorte étnico que interessa ao diretor abordar tanto nesse filme quanto no anterior, Lute pela Coisa Certa/School Daze, 1986).

Em O Som ao Redor, a ação transcorre num quarteirão num bairro de classe média da cidade do Recife – quarteirão esse que, conforme o filme caminha, percebemos ter uma estrutura de poder bastante semelhante a de um engenho. Cabe a João, o radical preguiçoso, a “obrigação” narrativa de introduzir alguns dos personagens do filme.

Além da delimitação do espaço onde a ação transcorre, ambos os longas compartilham outro elemento de dramaturgia: a tensão invisível. Em Lee, a repetição do tema “o dia mais quente do ano”, que denota um calor outro além do perceptível pelo termômetro. Em Mendonça Filho, fissuras que racham a falsa calmaria por meio de estratégias comuns ao cinema de horror – por isso mesmo na aula eu trabalhei com três filmes do gênero.

Com uma diferença que é crucial não só para ambos os filmes, mas para o entendimento de processos históricos: em Faça a Coisa Certa, a tensão é racial, culminando no pandemônio do final, no qual a harmonia se esfacela tragicamente; em O Som ao Redor, a tensão é social e de classe (ainda que um recorte racial não esteja de fora do filme, ele é apenas insinuado) e o resultado é também o fim da falsa paz e a revolta.

Fight the Power, canção que o Public Enemy compôs para o filme, é seu o leitimotiv sonoro, a música que banha a tensão invisível. No contexto da história, está em disputa justamente a matéria decorrente do título: o que é fazer a coisa certa? A qual narrativa (pacífica ou violenta, dicotomia que marca bastante o ser negro nos Estados Unidos desde meados dos anos 1960) deve-se associar? Mais: quem é o poder a ser combatido? Ali, no caos de uma injustiça endêmica sendo cometida na sua frente, o poder toma o corpo do dono da pizzaria, Sal; no contexto de O Som ao Redor, o velho Francisco.

Comecei este post falando sobre Blaxploitation. Penso nos versos de Chuck D. ao dizer os porquês de lutar contra o poder mais de uma década depois que esse conjunto de filmes já tinha saído dos holofotes. Sem nenhuma vontade em pedir desculpas ou moderar o tom. É essa uma das razões: personagens que não pedem desculpas por existir nem licença para viver. Elementos bastante fortes quando vistos por um espectador daqui, que vem do país dos pactos.

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