Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures)

Assim como as personagens retratadas em Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures) tem de tolerar uma série de ataques – velados ou explícitos – para simplesmente executar seus respectivos trabalhos na NASA e deixar florescer o potencial, nós, o público, temos de tolerar uma série de bobagens do filme de Theodore Melfi para poder conhecer as ações de três mulheres negras pioneiras em matemática, engenharia espacial e programação.

Quais seriam essas bobagens? Por exemplo, um roteiro que reza unicamente segundo as palavras das duas bíblias do roteiro, os famigerados livros de Syd Field, Roteiro: Os Fundamentos do Roteirismo, e de Robert McKee, Story: Substância, Estrutura, Estilo e os Princípios da Escrita de Roteiro. Estrelas Além do Tempo é, dentro dessa fórmula de contar uma história, a aplicação de um manual de como construir empatia e antipatia, posicionar e renovar os obstáculos enfrentados pela(s) heroína(s), personificar comportamentos sociais complexos em personagens específicos dando a ilusão de que o problema está somente no indivíduo, oferecer redenção para aqueles que executaram atos de vilania para reforçar o efeito educativo das ações da(s) protagonista(s), inserir o humor como ferramenta para atenuar momentos ásperos, unir protagonista(s) e antagonista(s) de forma a re-harmonizar o ambiente, dissipar tensões e construir aquela sensação de satisfação de que a(s) heroína(s) venceram contra todos e de que o problema está resolvido.

Ao espectador crítico, pois, cabe tolerar, e tolerar mais um pouco. Tolera-se por saber que o o momento de redenção chegará, que poderemos gritar em silêncio, internamente, “É isso aí Katherine, esculacha esses brancos racistas! Arrasa nesses cálculos, amiga!”. Porque se tem a expectativa de que Katherine, Dorothy e Mary Jackson, as nossas heroínas, farão algo para lavar a nossa alma. E lavam a cada subida de Katherine naquela escada apoiada sobre a lousa gigante; a cada gesto de resistência de Dorothy para manter a sua dignidade de mulher negra, matemática e mãe; a cada resposta atrevida de Mary Jackson.

Toleram-se as bobagens em Estrelas Além do Tempo do mesmo modo que se tolera aquele ar “elegante”-elitista-racista do tênis só para poder dar socos no ar quando Serena Williams destrói mais uma adversária com o seu forehand avassalador, seguido de um alto e claro “COME OOOOOOON”. Até a trilha incidental que acentua os traços patrióticos se tolera.

Duas passagens, contudo, são bastante difíceis de tolerar, mesmo para quem assina o contrato espectatorial de ir assistir a um filme hollywoodiano: a escolha por introduzir humor nas cenas em que Katherine vai ao banheiro e a decisão do filme de, no final, simplesmente limpar a barra dos brancos. Sobre o primeiro: sabe-se que alívio cômico é uma ferramenta bastante utilizada no cinema comercial americano para, evidentemente, amenizar o teor de algumas cenas. Contudo, colocar uma trilha pop-preta-cool do Pharrell Williams naquelas sequências em que Katherine tem de correr por quase dois quilômetros para acessar um outro prédio distante onde havia banheiros para negros é bastante complicado. Não há como aliviar aquele dado do real nem como retratar tamanha violência como se ela estivesse dentro de uma cena de O Professor Aloprado.

Uma coisa são as tiradas cômicas de Mary Jackson, orgânicas à característica espevitada personagem (o comentário sobre o astronauta gato, o sarcasmo contra o policial branco na abertura). Outra, bastante diferente, é essa intervenção de fora para dentro para inserir o alívio da comédia porque, segundo os manuais de roteiro, deve-se estar atento aos riscos de não machucar em demasia o espectador.

Sobre o desfecho dos personagens brancos racistas, Paul, o chefe imediato de Katherine, e Vivan, a supervisora que emperra o crescimento de Dorothy. Estrelas Além do Tempo é bastante digno ao retratar os olhares esquivos, os suspiros inaudíveis de “ohhh” na entrada das personagens em ambientes reservados exclusivamente aos brancos, a indisposição, a grosseria no trato e como o racismo à americana, por ter sido constituído através de uma estrutura jurídica que negava cidadania aos negros, montou um labirinto com ares legalistas cheio de ruas sem saída, permitindo que sempre se viesse com a desculpa de que “não posso fazer nada, são as leis”.

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Tanto que, próximo ao desfecho, entrega o seguinte diálogo:

Vivian: Ao contrário do que você possa pensar, eu não tenho nada contra vocês negros.
Dorothy: Eu sei que você provavelmente acredita nisso.

DAMN!

Essa interação não só é qualificada como diálogo de cinema, mas também uma brilhante cutucada na boa consciência crítica que acha que racismo é problema do outro, não meu. Mas não: Estrelas Além do Tempo precisa mostrar que Paul e Vivian aprenderam a lição de que negros são seres humanos também (ele traz uma xícara de café a Katherine, Vivian chama Dorothy de Mrs. Vaughan pela primeira vez). E com isso, deixa lá à mão estendida para o espectador branco, que sai do cinema levando consigo um bom-mocismo crítico ativado.

Sabe-se, novamente, que dentro de uma história em que os obstáculos são personificados por personagens, mostrar os “vilões” simpatizando com o herói (ou no caso desse filme, reconhecendo a humanidade das heroínas) significa sugerir ao público que o herói venceu, que os inimigos agora estão do seu lado. Mas há uma pequena implicação ao adotar essa convenção de desfecho quando o que representa o obstáculo para as heroínas é justamente o racismo: construir um falso entendimento de que A) o racismo é problema de indivíduos, não de uma estrutura que pauta todas as relações sociais e que, portanto, eliminar certos indivíduos não resolve o problema, só passa a ilusão de resolução; B) como o obstáculo está no indivíduo, basta uma pessoa negra mostrar para o branco que ela é também um ser tão humano quanto ele que naturalmente sua cidadania será reconhecida – aham, senta lá, Cláudia!

Uma vez mais, a tolerância a tudo isso para apenas ter a chance de conhecer, via imagens em movimento, a trajetória de três mulheres negras que poucos de nós ouvimos falar. Toleram-se até duas horas e sete minutos de direção careta para encontrar apenas um plano de cinema – aquele da chegada do exército das pretas subindo rumo à sala da engenhoca da IBM.

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Haja tolerância.

3 comentários

  1. Qual o “racismo” do tênis agora? Elegância é coisa de branco? Que complexo de inferioridade hein, sr crítico militante.

    Responder
    1. O tom da sua “pergunta”, o que você destaca no texto e maneira que o faz é mais um atestado do lugar em que você observa e age sobre o mundo do que uma evidência de um suposto “complexo de inferioridade” deste que aqui escreve.

      Responder

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