O que pode ser o cinema, e o cinema negro, brasileiro em 2018

Já que esse texto é sobre o futuro, me parece apropriado olhar também para o passado. Na foto, Adélia Sampaio que, com "Amor Maldito" (1984), se tornou a primeira mulher negra brasileira a dirigir um longa-metragem.
Já que esse texto é sobre o futuro, me parece apropriado olhar também para o passado. Na foto, Adélia Sampaio que, com “Amor Maldito” (1984), se tornou a primeira mulher negra brasileira a dirigir um longa-metragem.

Se 2017 foi um ano de explosão das questões raciais no cinema aqui no Brasil, 2018 será um ano em que poderemos mensurar resultados ou continuaremos na retórica do “abrir o debate”?

Faço uma brevíssima recapitulação de alguns eventos do ano passado, especialmente para quem não esteve nesses espaços. Em Tiradentes: o tensionamento no debate de abertura sobre representatividades, as provocações trazidas em outros debates oficiais e as rodas paralelas de conversa; em Brasília: as já bastante comentadas intervenções nos debates oficiais com as equipes de Café com Canela, O Nó do Diabo, Vazante e Peripatético, mas também a conversa em torno da mostra Corpos Indóceis e o extenso bate-papo na UnB; no Festival de Curtas de São Paulo: a fatídica mesa “Quesito de Cor”; na Semana – Festival de Cinema: o debate sobre branquitude; no Janela de Recife: da retrospectiva LA Rebellion, passando pelas rodas de conversa e desembocando até nos discursos durante a premiação; na Semana do Audiovisual Negro, promovida pela APAN: a programação dos seminários.

(Eu poderia ainda abrir uma outra aba e lembrar que, em 2016, também no Festival de Brasília, aconteceu o crucial seminário “Produção audiovisual, identidade e diversidade – um olhar dos realizadores afro-brasileiros e indígenas sobre o cenário brasileiro do audiovisual”).

As reflexões que compartilho neste texto são também fruto de conversas com interlocutores dos campos do cinema, das artes plásticas e das ciências sociais. São tanto questões que mobilizam o meu desejo de atuação em 2018 como assuntos que me preocupam. Espero que o texto seja apreendido no seu tom propositivo de interlocução com pessoas negras, principalmente, mas também com pessoas brancas.

Representação e representatividade

Sinto que se passa um fenômeno: o da protagonista negra. Deixem-me destrinchar. No último semestre notei um aumento significativo na quantidade de roteiros – bons e ruins – escritos por pessoas brancas que colocam como protagonista uma menina ou uma mulher negra. Toda a equipe principal composta por pessoas de cor branca – direção, roteiro, produção, fotografia –, mas com protagonista ou uma personagem-chave negra. Esse fenômeno me leva a uma questão imediata: colocar personagens negros na frente da câmera é suficiente para a representatividade?

O assunto tem duas vias que muitas vezes se cruzam. Uma é a da representação, atrelada à luta antirracista e tradicionalmente pautada em questionar a atuação de pessoas brancas na construção da “imagem do negro”, ou seja, observar quem e o que está na tela, como lá está e qual o peso dessas imagens na sociedade. Esse debate pode ser feito tanto em cima de imagens consideradas perniciosas (a oposição a Vazante pode ser um exemplo) quanto carregadas de humanidade (trago para a conversa o Diamante, o Bailarina). E pode se expandir também para o campo da circulação das imagens (a mostra “John Akomfrah – Espectros da Diáspora” me ocorre como uma ótima contribuição de um curador branco, Rodrigo Sombra, no oferecimento de outra representação de personagens e de autores negros).

A outra via é a da representatividade. Da presença de pessoas negras (sim, no plural) nos processos de criação, na tomada de decisões, nas escolhas do que será produzido e o que irá circular, nos papeis de avaliadores acerca dessas imagens. O que significa dizer que falar de representatividade é inevitavelmente falar de relações de trabalho. De redistribuição de riqueza: na produção – quantos negros e quantos brancos na equipe? Quantos cabeças de equipe são negros? Qual a porcentagem dos recursos acessados por produtoras de negros; na divisão de status – aqueles que detém capital cultural traçarem pontes para que outras mãos toquem ou no dinheiro ou no prestígio; nos processos curatoriais – quantos curadores são negros? Qual a intensidade dos contatos feitos para que se diversifique qual a cor de quem escolhe os filmes?; nas mesas de debate – três homens brancos novamente, jura?

Em 2018, ano que será um pega pra capar, espero que se solidifique a compreensão de que representação sem representatividade é nada mais que recurso narcísico para a “esquerda que aparece” continuar aparecendo [1]. A Drik Barbosa já mandou a letra: “Meus corre é na rua, não na timeline/ Faz texto, discursa, posa pros click, mas não bota uma mina preta nos clipe!”.

Voltando ao fenômeno da explosão de roteiros com protagonistas negras. Artistas brancos, muito legal que alguns de vocês estejam preocupados em construir imagens menos fictícias de Brasil. Mas não me venham com o “preto token”. Não dá pra eleger o “preto iluminado” para dividir a ração, enquanto a chave que controla a dispensa permanece nas mesmas mãos [2].

Autores e autoras negras, o que propor para 2018

O que farão os autores negros em 2018? Quais serão seus objetos de interesse? Que mise en scène serão postas como gestos de apreensão do mundo? Considerando apenas São Paulo, onde estou baseado, tenho conhecimento de quase uma dezena de filmes que sairão neste ano, muitos curtas, em sua maioria contemplados pelo edital da SPCine.

Esse cenário me leva a uma questão que terei o prazer de investigar neste ano: quais filmes serão percebidos como “mais negros” que outros? Quais mise en scène serão interpretadas como “mais próximas” de uma autoria negra do que outras? Abro aqui primeiramente uma via de interlocução com pessoas negras e, em seguida, com brancas.

Tenho percebido em muitos filmes a recorrência de uma certa ideia de Ancestralidade. O que me parece não só justo, mas fundamental: só nós sabemos o tamanho do buraco no qual a escravidão nos enfiou ao apagar, geração a geração, qualquer traço que remetesse a um passado pré-sequestro ou a uma vida em que não fôssemos sistematicamente separados de quem nos pariu [3]. Recorrer à Ancestralidade é, muitas vezes, um processo de construção de níveis mínimos de sanidade.

A questão que coloco é outra: só há autoria negra nos filmes que fazem uma parada explícita no terreno da Ancestralidade? Só é cinema negro ou “filme de preto” quando se representa um orixá em cena? Só é possível reconhecer negritude em gestos que proponham conexões em linha direta entre o Brasil de 2018 com a África do Século 16? E se um diretor(a) ter como uma fonte de inspiração, sei lá, o cinema do Walter Hugo Khouri: será discretamente ostracizado?

Sinto que tenderemos a responder de forma automática a essa colocação, negando-a, alegando que “imagina, somos livres”. Mas vivemos essa liberdade ou sucumbimos a uma certa expectativa do campo negro, a uma narrativa que afirma ser preciso demonstrar, em signos decodificáveis, por meio da eleição do tema e na construção da encenação, de que se trata de uma diretora ou de um diretor negro?

De preto para preto, a minha expectativa é ver, em 2018, pretos fazendo literalmente de tudo no cinema. Seja sampleando formas e assuntos assumidos como “de branco”, seja realizando um audiovisual interessado nos nossos processos de cura das violências cotidianas do racismo; que tenha na trilha um Prelúdio de Bach ou um ponto d’Os Tincoãs. Nos últimos convites que recebi para falar em debates tenho batido na tecla de que podemos ser muitas coisas. Enxergo a autoria negra como algo múltiplo e, num limite, livre. Daqui no meu lugar no mundo – seja na crítica ou na curadoria, pesquisando ou dando aulas – espero ver, em 2018, muitos desejos de cinema e muitos recortes de cinema negro e de negros que fazem cinema [4].

Agora, de preto para branco, em especial de um crítico e curador preto para críticos e curadores brancos: estejam atentos e investiguem seus pontos cegos e, mais que isso, suas expectativas e classificações hierárquicas do que pode ser um “filme de preto”. Vocês sabem do que estou falando, nem que seja por uma outra via. Vêm de longa data as conversas não-oficiais sobre a percepção de como muitos curadores europeus têm uma certa expectativa do que deve ser um filme que vem do Terceiro Mundo. Faço a observação para que a predileção por certo “filme de preto” não seja atravessada pelo recurso narcísico e egoico de escolher tal filme para passar uma boa impressão como curador – novamente, retomando a Fabiana de Moraes, para que você não seja uma “esquerda que aparece”. Se aparecer porque decisões foram tomadas com comprometimento, bacana!; mas não me vá tomar decisões para aparecer.

Como ocupamos (e ocuparemos) os espaços

De preto para preto. Somos muitos e múltiplos. Pertencemos, inclusive, a gerações bem distintas. Dito isso, tenho um desejo muito grande que em 2018 tenhamos muito mais fóruns de discussão de nós para nós mesmos para que possamos refletir sobre muitos assuntos, em especial dois:

Que filmes estamos fazendo? A crítica tem um lugar primordial nessa discussão. Precisamos escrever mais sobre os filmes de pessoas negras aqui no Brasil – aqui assumo também minha mea culpa, mas nem de longe sou, felizmente, o único crítico negro no Brasil. Sendo assim, my niggas, rise up!. E precisamos escutar essas vozes que falam sobre os filmes. Mas essa responsabilidade deve ser dividida entre outros agentes do cinema e da sociedade como um todo, não é exclusiva da crítica – ainda mais nesse nosso mundo de pulverização dos discursos.

Obviamente tenho ciência de que nos espaços que ocupamos refletimos constantemente sobre o que deve ser dito, como e para quem. Pesamos como uma fala crítica pode expor algo, ou alguém, numa estrutura racista que é Pac-Man de gente preta. Mas a crítica – e a Crítica – são indissociáveis à arte. Esse papel deve ser ocupado por nós também, maciçamente.

Segundo ponto: como estamos ocupando os espaços tidos como brancos? Me refiro menos aos filmes e mais aos nossos corpos e nossas falas mesmos espaços. Longe de mim querer normatizar, a partir da minha compreensão de correto ou equivocado, as posturas alheias. Não levanto essa bola com um tom dogmático, mas reflexivo. Estamos conversando sobre, uma vez nos espaços, como estamos os ocupando? Temos no nosso horizonte a autocrítica? Investigamos nossas contradições? Estamos contribuindo para os pretos mais jovens no rolê, emprestando-lhes nossas experiências? Estamos aprendendo com essa juventude a perceber que o nosso arcabouço discursivo quiçá não seja a melhor resposta?

Em 2018 (e em 2019, 20, 21… 35, 40!) estejamos refletindo sobre isso. Seja numa grande roda de conversa, seja num áudio de WhatsApp.

[1] O termo “esquerda que aparece” foi cunhado pela jornalista e escritora Fabiana Moraes nesse artigo bastante interessante sobre sua presença em espaços onde brancos a circundam: https://medium.com/@fabi2moraes/eu-n%C3%A3o-sou-sua-negra-675f46470347

[2] No capítulo IV de My Bondage and My Freedom (1855), intititulado “Treatment of slaves on Lloyd’s Plantation”, o ex-escravo Frederick Douglass relata como o cotidiano da fazenda se alterava no dia em que a cota mensal de alimentos seria distribuída aos escravos. O autor atribui tal agitação a dois fatores: à quebra da monotonia do trabalho no campo e à disputa por quem, entre os escravos, poderia entrar na Casa Grande. “Essa aparência empresarial [da fazenda do Coronel Lloyd] se intensificava nos dois últimos dias de cada mês, quando os escravos de diferentes fazendas vinham pegar suas provisões mensais de farinha e carne. Esses eram dias de gala para os escravos e havia muita rivalidade entre eles sobre quem seria eleito para ir à Casa Grande para fazer a distribuição” (P. 166, tradução minha).

[3] Me refiro à prática de, durante a escravidão, vender diferentes entes da família para senhores distintos como medida punitiva a escravos que não se submetessem; a separar o bebê da mãe após os primeiros dias de nascimento; ao brutal apagamento da identidade de origem no momento do sequestro na África e ao rebatizar essas pessoas aqui no Brasil. Tais práticas ainda reverberam, em outros registros, no Brasil contemporâneo. Por exemplo, na figura da empregada doméstica que dorme na casa da família, cuidando dos filhos, e das urgências da patroa, enquanto seus próprios filhos são empurrados a crescer sem mãe. Um dos blocos de Domésticas (2011) ilustra, apesar dos senões que possa ser feito ao filme, esse cenário com clareza: o depoimento da empregada baiana, louca pelo Bahia, no quartinho, enquanto dobra os lençóis da cama.

[4] Meu sonho é que no meu tempo em vida alcancemos níveis básicos de cidadania para não sermos vistos apenas como blocos uníssonos. De forma que, por exemplo, possamos sonhar com uma disputa de ideias e propostas entre pessoas negras tal como a que temos presenciado entre Ta-nehisi Coates e Cornel West nos Estados Unidos.

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