“Every nigga is a star” é a música que ecoa no começo de Moonlight, sob a tela escura ainda, antes de Juan entrar em cena. O filme sequer começou, mas meu coração já está ganho, disponível para as imagens que virão na próxima hora e meia. Pois nesse verso da canção de Boris Gardnier que embala a entrada de Juan no filme está escancarado que Moonlight é negro, incontornavelmente negro.
Nos versos da canção de Boris diz-se que todo “nigga” é uma estrela, não um “nigger”, deslocando um termo racista como o “nigger” e tornando-o símbolo de orgulho (como diz James Baldwin em Eu não sou seu negro, “Não sou um nigger, vocês [os brancos] que inventaram o nigger”). Chiron não tem uma vida de estrela, mas ele é uma estrela. E é por ter essa consciência, é por enxergar assim o seu protagonista, que Moonlight: Sob a Luz do Luar busca sempre encontrar a estrela que existe dentro de Chiron mesmo quando os dados externos são apenas de trevas e terror.
“Encontrar a estrela que existe dentro de Chiron” soa tão piegas como uma recomendação vazia extraída de um livro de auto-ajuda ou alguma letra mal traduzida de uma faixa obscura de um álbum da Sandy & Júnior. Mas não quando se fala do filme de Barry Jenkins, que não foge dos conteúdos ameaçadores. Me parece evidente haver ali uma preocupação sobre como filmar Chiron, seu entorno e as relações que estabelecem, entrando em contato com a precariedade e a tristeza profunda, mas sem reforçar um discurso determinista e os códigos de como se deve filmar a “aspereza da vida”. Jenkins não se submete à câmera tremida como recurso óbvio para demonstrar tensão – pelo contrário, em quase todos os momentos a câmera se comporta de forma acentuar o fluxo do filme, deslizando pelo ar, fugindo dos traços horrendos de um Joachim Lafosse, por exemplo.
Moonlight: Sob a Luz do Luar traz a pergunta e encontra uma resposta: filmar algo que é do coletivo (uma experiência histórica negra), mas construir com profundidade o que é da ordem do indivíduo sem, contudo, anular o que lhe é maior. Talvez por isso que chegue em algo mágico: Chiron é único – sai-se do filme tendo na memória cada detalhe que o torna específico –, ao mesmo tempo que Chiron não é o primeiro e não será o último. Chiron somos nós, meninos negros gays que se tornam homens negros gays.
(Parênteses:
Para você que ao se deparar com essa frase acendeu um alerta e reagiu dizendo “mas eu não sou negro e gostei do filme, ali tem uma história universal, o filme não é só para negros, não é só sobre negros” etc, respondo de antemão: evidentemente que amar – e cultivar amor próprio – é algo universal. Lembro, contudo, que para corpos negros arrancados de suas terras para “serem levados ao estrangeiro e virar carne de carneiro para branco”, como escreve Ana Maria Gonçalves em Um defeito de cor, amar, e amar a si mesmo, é algo que se constrói, que se forja. Que não está dado. Por isso que o encontro final e o recurso de uma revisão do passado via elipse é tão poderoso: Chiron está forjando o amor. Permita-me, pois, olhar o filme sob esse ponto de vista.
Sigamos).
Jenkins divide seu filme em três partes: I. Little (infância), II. Chiron (adolescência), III. Black (idade adulta). Na primeira, predomina a dúvida (“O que significa ‘bicha’?”, “Eu sou uma bicha?”) e primeira tomada de consciência do que é o mundo e como ele age sobre o menino. Na segunda entra em cena um estado de terror permanente (personificado na ameaça representada tanto pelo moleque brigão do colégio, Terrel, quanto pela mãe). Na terceira predominam o luto, a reinvenção (“É, mano! Que dentes são esses? O possante? Quem é você, Chiron?”) e o reencontro.
Chiron começa o filme fugindo, correndo. Escondendo-se. Juan o descobre num canto sujo. Arranca o tapume que cobria a janela sem vidros. Como se chamasse o menino “venha para cá, para o lado da luz! Venha aprender a sorrir comigo”. Chiron termina o filme parado, acalentado, olhando para trás. O Chiron adulto tem de aprender a embalar a criança que foi como Michael Jackson embala o ratinho em Ben.
“Every nigga is a star”: damn right!
Amor, negros que amam, negros que choram, negros que sofrem de depressão. A peça Farinha com Açúcar, do Coletivo Negro, passou por aí, assim como Cartas à Madame Satã, ou Me Desespero Sem Notícias Suas, da Cia Os Crespos. Também passou por aí o livro Invisible man, got the whole world watching, de Mychael Denzel Smith.
Mas aporto em Real, de Kendrick Lamar (letra original aqui), que traduzo um trechinho (perde-se o poder da rima e dos duplos sentidos, mas ao menos garante uma compreensão geral para quem não se sente confortável com o inglês):
Te garanto que te conheço muito bem
Seus olhos nunca mentem, mesmo se eles desabarem
do céu e seu olhar perder o brilho
e vira um mofo verde, vejo que você segue no trilho
daqueles que vivem num mundo com um plano B
porque o plano A só pode levar a outro erro
E você não vê chance de sucesso indo pro plano C
Quando tudo desmorona, você vai insistir que é amável
E amar a todos e amar quando você a ama
Você ama tanto, você ama quando o amor doi
Você ama carrões e presidentes velhacos mortos
Você ama as potrancas, você ama domá-las
Ama controlar tudo que você ama, ama tretar
Ama as ruas, ama correr, se esconder da polícia.
Ama tua quebrada, ama até a morte
Mas o que tem a ver o amor com isso se você não ama a si próprio?
É, parece que todo mundo gostou de Moonlight demais para fazer qualquer crítica. E todo mundo gostar de Moonlight parece que tem a ver com o fato de que infelizmente não temos ainda o número de filmes suficientes sobre nossas histórias para poder falar que Moonlight não é sobre meninos negros gays e que não, ele não pode ser sobre nossos amores próprios. Os meninos negros gays que eu conheço me contam outras histórias – e é claro que Chiron existe, mas eu já sabia isso antes de Moonlight e, nesse sentido, não tem nenhuma novidade -, histórias que falam da homofobia dos outros (parafraseando Grada Kilomba, a homofobia é um problema dos homofóbicos, não de Chiron) e não de como a sublimamos. Moonlight pode ter alguma beleza mas, com certeza, não está na história de Chiron.