Que imagem vejo quando me olho no espelho?

O primeiro plano de Pele Suja Minha Carne – um adolescente negro dentro do metrô carioca, com o olhar perdido num horizonte que está fora de quadro, banhado pela narração da moça do metrô anunciando que a próxima estação é São Cristóvão – já traz uma gravidade, um peso às imagens que se seguirão. Algo vai acontecer ou algo aconteceu, não se sabe. O que se sabe é que aquele moleque está prestes a embarcar numa jornada.

A jornada, descobriremos ao longo dos 13 minutos de filme, trará, como sempre trazem as jornadas, descobertas não só sobre si mesmo, mas sobre o entorno. Pele Suja Minha Carne traz a dura informação de que João não compartilha da mesma humanidade que o seu entorno (escola, sociabilidade no prédio) e do seu amigo. A falácia das tranquilidades das tardes com pizza congelada, pelada no prédio, rolê na hamburgueria, partida de Fifa no videogame, das bolinhas de papel na sala de aula. Basta um evento para que a suposta atmosfera de harmonia (“Pô, o filho da puta do porteiro nem me avisou que você tava aqui”) desmorone.

A jornada de João nesse curta é descobrir essa informação. Quando ele descobre, reflexo embaçado no espelho, desaba – e desaba-se junto com ele.

Os elementos de roteiro e as escolhas de direção – ambas sob responsabilidade de Bruno Ribeiro –, estabelecem pequenas “anormalidades” naquele mar de banalidades e representações genéricas do “filme de adolescente”: a opção por, logo de cara, enquadrar as costas de João em primeiríssimo plano e fazer com que seu amigo branco venha do segundo plano, desfocado, para emparelhar-se a João; um esfregar da pele ao banho muito mais forte que o necessário pra limpar o suor do jogo (afinal João está a esfregar a sujeira que aportou sobre ele no futebol ou uma mácula histórica?); um plano-detalhe aqui e ali (em especial um tapinha na bunda que parece funcionar como uma claquete a dar a partida na ação do plano)…

Como em todo filme em que o sopro final, o plano que encerra, é o que dá outro significado às imagens assistidas até então, é indispensável que cada camada adicionada tenha, de fato, peso dramatúrgico para que o encerramento não soe descolado, fruto de uma mastermind que tudo controla e induz a experiência numa direção. Felizmente Pele Suja Minha Carne constrói com habilidade cada detalhe – se não os revelo neste texto é porque o curta de Bruno Ribeiro ainda circulou por muito menos festivais do que deveria. À exceção do evento de virada em si: a sequência recolher roupas do varal-peitoral descoberto-beijo e rejeição é golpe baixo.

De resto, Pele Suja Minha Carne se revela uma experiência forte, especialmente na forma em que trabalha o tripé banalidade-ruptura-consciência. Comum a muitos espectadores negros que finalmente veem a imagem realmente refletida quando se olham no espelho (portanto, não é à toa que a palavra “preto” seja pronunciada uma única vez e justamente naquele momento).

pele suja minha carne3

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