Comets, uma trivial história de amor nada trivial

Printpor Heitor Augusto*

Há algo absolutamente banal e familiar em Comets (Cometas), segundo longa da georgiana Tamar Shavgulidze. Um reencontro entre duas mulheres na casa dos cinquenta revela uma história de amor interrompida de forma abrupta. O abismo temporal traz para a superfície as cicatrizes remendadas com band-aid. O que há entre as duas não é necessariamente raiva, frustração ou uma espécie de acerto de contas. Na verdade, terminamos o filme sem entender muito o porquê da volta de Irina.

Essa sensação de terreno familiar trazida pelo enredo é, contudo, acompanhada por um profundo estranhamento formal conscientemente provocado pela direção de Tamar.
E esse é o charme que torna Comets um pequenino e especial filme que traz acalanto. A decupagem de Tamar indica que alguma peça daquela história está fora do lugar. Por que a câmera se mantém tão distanciada da mesa na qual mãe e filha conversam numa tarde qualquer? Qual o sentido de o interior da casa estar mergulhado em tão profunda escuridão? Que intenções residem por trás do estabelecimento tão teatral de um espaço diegético?

A primeira quebra brusca daquele ambiente de aparente normalidade se dá num falso contraplano. Pela primeira vez saímos dos limites dos portões do jardim da casa. O plano que somos convidados a observar mais se parece com uma parede onde os quadros e objetos de decoração distribuem-se numa estranha proporcionalidade. A placa da rua está muito à esquerda, enquadra-se a porção “errada” do carro e o centro do quadro é o hectare menos valioso daquele plano.

Segunda quebra: outro falso contraplano – ou seja, existe algo realmente fascinante no encadeamento dos planos. Nana chama por Irina, sua filha. Quem a responde é Irina, seu primeiro amor de trinta anos atrás. Novamente, a decupagem nos coloca numa posição de desorganização da experiência, já que, mesmo um dia depois de ter assistido ao filme, não tenho certeza se tudo não passou de um sonho.

Minutos depois, a terceira quebra: a câmera finalmente sai do tripé e, na mão dx operadorx, passa ao lado do corpo de Irina e nos leva em direção a Nana, que cuidadosamente cuida do jardim.

Essa perturbação da ordem, da calmaria e do próprio gênero cinematográfico – Comets é um filme de reencontro que tensiona as convenções do filme de reencontro – cria uma experiência prazerosa porque instável. Como se, enquanto espectadores, estivéssemos num solo largamente explorado, mas calçando botas desconfortáveis. Ou, ainda, se visitássemos anos depois a vizinhança na qual crescemos, mas onde restam poucos rastros do passado. É curioso pensar como um filme tão controlado nos joga numa experiência de desabamento.

Há outra perturbação de gênero no filme de Tamar Shavgulidze: não há homens no filme. Há Nana e as Irinas – sua filha e sua ex-namorada. Homens pertencem ao extracampo – o filho não passa de um som de telefone que toca desesperadamente em busca pela mãe – ou a um passado narrado pelas mulheres – o marido de Nana que morreu com medo de ter a mulher roubada por outra mulher; o pai de Irina-namorada, que a fez voltar para Cracóvia, ou o namorado da Irina-filha, de quem ela fala com carinho e escárnio.

Trazendo mais um nível de instabilidade para a experiência de assistir Comets, o contexto político da Geórgia é uma parte significativa da matéria que uniu/desuniu as duas jovens mulheres que se reencontram décadas depois. Meu conhecimento do processo político e histórico da Geórgia não é suficiente para fazer qualquer comentário aprofundado, mas reconheço que há alguma coisa ali a ser acessada, até mesmo nas relações culturais e econômicas daquela cidade.

Assim, Comets equilibra-se entre o bucólico do cotidiano – durante a apresentação aqui em Toronto, Tamar disse torcer para que as pessoas não ficassem entediadas com o filme – e uma decupagem altamente controlada, responsável, ao lado da firme atuação das atrizes, especialmente de Ketevan Gegeshidze, por manter aquecido um filme que facilmente ter se tornado desinteressante.

*Filme visto durante o 2019 TIFF – Toronto International Film Festival

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