Contracorrente e os filmes gays

Já quase saindo de cartaz em São Paulo, Contracorrente, o filme gay que andou impressionando plateias do Mix Brasil, Sundance e San Sebastián, é mais um filme com o enredo do amor proibido. Passaram-se mais de quatro séculos de Romeu e Julieta, o texto de Shakespeare que automaticamente nos associamos ao lembrar desse arquétipo, e ainda presenciamos filmes com esse mote. Sinal de que a instância do proibido é algo muito sério para a humanidade.

Mudam-se as cores, é verdade. Nesse filme peruano, um pescador casado e prestes a se tornar pai tem um romance às escondidas com um pintor que costuma passar férias na vila. Miguel e Santiago são os sujeitos desse amor que sucumbe porque a sociedade aponta o dedo e diz “não pode! Isso é feio!”.

É difícil resumir o tom do filme. Não é nem um conto de fadas, nem um retrato duro da impossibilidade do amor naquele contexto. Afinal, as lindíssimas paisagens naturais e os enquadramentos que valorizam a calmaria da praia suavizam os conflitos latentes. Daí resulta o que talvez haja de mais diferente no filme (sendo o que se segue apenas uma constatação, não um elogio): trazer um personagem que passou muito perto da felicidade, enquanto que na maioria dos filmes gays ou a ela é algo impensável (daí já saíram bons filmes) ou o momento social permite hiatos de respeito (desse tema saíram menos filmes bons).

Não podemos dizer que é um filme inocente, já que a postura de cada personagem é condizente com sua realidade. Santiago, o pintor, está mais disposto (assim como o Jack Twist de O Segredo de Brokeback Mountain) a bancar uma relação. Hipoteticamente justo, já que é um tipo urbano, classe média alta, artista – Javier Fuentes-León, o diretor, também é honesto ao lembrar que este mesmo personagem mais liberado tem uma mãe que, quando descobriu a homossexualidade do filho, se fingiu de morta.

Do outro lado, Miguel, o pescador não se acha gay e até esbraveja “eu não sou viado, caralho!”. Também idealmente justo, já que ele vive numa vila pequena, na qual o homem tem um papel a cumprir que não inclui, obviamente, gostar de outro homem. Ou seja, com uma representação fidedigna tanto de um lugar como dos personagens, Contracorrente não é mentiroso.

Então, por que é morno?

Porque falta cinema a Contracorrente. Fuentes-León comete uma série de equívocos comuns a realizadores vindos de países que não conseguem manter uma produção cinematográfica regular. A cor local é diferente, mas o determinismo do enredo e os escorregões narrativos são muito parecidos com o venezuelano Hermano.

Não falta posição política a Fuentes-León, já que a mensagem mais forte é que a covardia de Miguel decidiu o insucesso da relação e, quando ele tomou uma atitude, a Inês já era morta. Mas faltou a ele regularidade como diretor: ao filmar a transa de Miguel e Santiago, o peruano recorreu ao clichê da sombra que revela apenas pedaços de corpos e apostou numa fajuta poética de comercial de sabonete. Ao dirigir os atores, deixou que eles passassem do tom e indo para o melodramático. Ao mostrar insegurança, aceitou que a música tentasse dar conta do que faltou durante a filmagem.

Tristeza e felicidade

Chamo de pé-na-jaca um estilo de cinema gay que é anterior a Contracorrente. São filmes nos quais a essência resulta em: ser gay é uma merda ou porque o mundo é reacionário ou porque o respeito humano chegou muito tarde para alguns. Para mim, o exemplo mais forte dessa linha é Romance, o segundo longa-metragem de Sérgio Bianchi feito em 88.

A crítica costuma apontar (com razão, e nela me incluo) a falta de apuro da dramaturgia dos filmes de Bianchi – por isso a recepção, em geral, positiva a Os Inquilinos, seu filme mais recente. Porém, considero muito bem-vinda a aridez de Romance, a apresentação da falta de perspectiva dos personagens. Acima de tudo, a dificuldade do homossexual num momento em que a paranoia da Aids corria solta. Bianchi conseguiu captar uma era com sua câmera, assim como Cazuza fizera, na música, com Ideologia.

Mas esse estilo pé-na-jaca que denota que a vida é uma merda não é exclusivo dos anos 80. Ao defender para meu amigo Sérgio Alpendre o poder que eu vejo em Romance, ao mesmo tempo que torcia o nariz, Serjão me indicou um filme que talvez eu gostaria: Avant que J’oublie (Antes que eu Esqueça, nunca lançado comercialmente no Brasil), de Jacques Nolot, mais conhecido como ator.

Ele tinha razão: o filme é sensacional! Nolot fez um filme sobre o que eu chamo de segunda vertente do estilo pé-na-jaca em filmes gays: a liberação chegou muito tarde. No caso de Avant que j’oublie, Pierre Pruez sobreviveu como michê e só tem amigos que ou venderam serviços sexuais ou compraram. Num plano final melancolicamente degradante, o filme é um nocaute – mas que, de tão bom, dá vontade de rever diversas vezes.

Os mais jovens

Noulot, 67, e Bianchi, 65, são realizadores mais velhos. Já Daniel Ribeiro, que ainda não chegou aos 30, faz um cinema que se contrapõe ao pé-na-jaca: o mundo não é cor-de-rosa, mas nem por isso precisamos viver na escuridão. Nessa linha pertenceu seu premiado curta-metragem Eu Não Quero Voltar Sozinho.

O conflito, nesse filme, praticamente inexiste. É mais sutil e surge indiretamente mais por inveja e frustração de uma personagem do que por preconceito. Três vidas sustentam o filme: Leonardo, cego; Giovana, sua melhor amiga; Gabriel, o garoto novo no colégio. Ela tem uma queda pelo amigo, que está se engraçando pro lado do novato, enquanto este ninguém sabe o que ele sente.

Mas a atmosfera de Eu Não Quero Voltar Sozinho prioriza os conflitos do amor em detrimento dos da sexualidade. Estes existem, mas são menos importantes do que se o objeto do afeto irá corresponder ou não. Ou seja, o filme denota que, para os gays, a vida já não é uma merda e a era da escuridão diminuiu.

Romance, Avant que J’oublie e Eu Não Quero Voltar Sozinho (os dois primeiros com pontos de diálogo mais claros) representam dois tipos de postura política que resultam em filmes mais instigantes do que Contracorrente.

Em tempo: como não foi lançado nem em DVD no Brasil, baixe aqui o filme Avant que j’oublie e aqui as legendas do filme.
Em tempo 2: Daniel Ribeiro colocou no YouTube Eu Não Quero Voltar Sozinho. O link é este.
Em tempo 3: A Versátil lançou Romance em uma linda cópia que integra a caixa Os Filmes de Sergio Bianchi.
Em tempo 4: Contracorrente ainda está em cartaz.

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