Rainer Werner Fassbinder não é um cineasta recomendado para quem está em busca de esperança. Um dos melhores encenadores que o cinema já teve, Fassbinder é também um mestre em colocar a crueldade como algo ontológico ao humano.
Nos vários filmes em que ela, a crueldade, é o que medeia a relação entre os personagens, há um que gostaria de comentar: O Direito do Mais Forte é a Liberdade (Faustrecht der Freiheit), que a Lume Filmes, de Frederico Machado, lançou em DVD no Brasil – a Lume, aliás, tem coberto a lacuna da produção de Fassbinder por aqui, enquanto a Versátil lançou a maravilhosa cópia restaurada do filme/série/tratado Berlin Alexanderplatz.
Lançado em 1975, ano em que Fassbinder realizaria outros três filmes (o que lhe dá, com conforto, o posto de mais prolífico entre os grandes diretores), O Direito do Mais Forte é a Liberdade é uma anti-epopeia de Franz “Fox” Biberkopf, gay, sem instrução que é introduzido no mundo da sofisticação blasé por seu amante, Euge.
Ironia chamar seu protagonista de Fox, já que, conforme descobriremos, de raposa ele não tem nada. Está mais para pássaro inocente pronto para ser devorado por um ninho de cobras. Fox é a caça, Euge (e seus amigos) são os caçadores.
A cena mais “teatral” de O Direito do Mais Forte é a Liberdade |
Fassbinder, que jogou merda no ventilador com quase todos seus filmes, dessa vez mira sua metralhadora especialmente para a burguesia. E que pontaria! A construção da dominação de classe que aos poucos se estabelece em torno de Fox vale como cartilha didática sobre opressão.
Se em Whity a crítica às relações de poder se dá num registro híbrido de apropriação das convenções do melodrama e do distanciamento brechtiano, O Direito do Mais Forte é a Liberdade mostra um cineasta mais seco, direto. Não sei se realista, mas certamente mais próximo do realismo.
Como ilustram as cenas no inferninho gay que Fox frequenta. Ou as cenas da fábrica. Ou a viagem a Marrocos. Ou as festinhas da high society que Fox teima tentar se encaixar – e sua irmã, num gesto de consciência que tenta romper com o teatro burguês, brada “Isso aqui fede, fede demais”.
“Ele amava seus personagens, mas ele tinha consciência que apenas o amor não é suficiente para tornar algo visível”, disse Juliane Lorenz, montadora de Fassbinder pós-Num Ano de 13 Luas.
Há um ponto de diálogo entre a leitura de Lorenz sobre os filmes do parceiro, O Direito do Mais Forte é a Liberdade e o cinema de Jacques Nolot, do qual já se falou tanto neste blog e também na Revista Interlúdio.
Nolot, cujas cenas de seu A Gata de Duas Cabeças (La chatte à deux têtes) falam diretamente com o inferninho do filme de Fassbinder, é um herdeiro do cinema do alemão. Em especial, da desesperança. Herdeiro de um olhar seco, que não poetiza a poesia, muito direto com o mundo gay.
Nolot à direita em A Gata de Duas Cabeças |
Claro, em Fassbinder há a questão do melodrama, que inexiste em Nolot. Mas em ambos existe o rigor da encenação e a coragem em dizer uma coisa quando ela precisa ser dita. Mesmo que isso signifique chamar o espectador de canto e falar: “Tenha esperança não, porque isso aqui é tudo uma merda”.
Pois o plano final de Antes que me esqueça (Avant que J’oublie) é irmão do plano final de O Direito do Mais Forte é a Liberdade.