Nesta terça, 29, faz 34 anos que Alfred Hitchcock morreu. Aproveitando essa quase efeméride, publico aqui o ensaio que escrevi sobre The Skin Game (1931) para o catálogo mostra Htichcock é o Cinema, realizada entre julho e setembro de 2013 no Cine Humberto Mauro sob coordenação de Rafael Ciccarini.
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No cinema, o passado é fonte de virtude que livra um personagem da condenação ou de fatos que assombram um corpo assustado cujos gestos calculados tentam não despertar desconfiança. Invariavelmente, o passado irá cobrar a dívida. Com juros.
Em The Skin Game, estabelecem-se as aparências que, como é comum em Hitchcock, sofrerão rachaduras necessárias para se chegar à real natureza dos personagens e à resolução do conflito. A virtude, temos a impressão, está do lado dos Hillcrists. Aristocratas – o que automaticamente conferem aos personagens uma suposta respeitabilidade social –, os Hillcrists cultivam uma paisagem, a do campo, que transpira harmonia. Benfeitores, permitem até que um casal paupérrimo more nas terras deles.
Mas já no começo o idílio é posto em dúvida. Uma árvore está prestes a ser derrubada. “Não gosto do seu pai”, diz uma atrevida moça. Ela, indiretamente, apresenta os outros, aqueles que o filme nos dirá, num primeiro momento, serem os sem virtude: a família Hornblowers. Burgueses – o que já estabelece o contraste deles como os que destroem, em oposição à tradição –, querem substituir o paraíso pelo mundano, o imaculado pelo pecado, arrasando o campo em privilégio dos prédios. Só olham para o futuro. São expansivos e, como indica o sobrenome, barulhentos.
O aristocrata, Mr Hillcrist, é elegante, tem bom porte físico, anda com a coluna ereta e sua família é completa (Chefe da Casa, Esposa Severa e Filha Opinativa, mas que acata a autoridade). O burguês, Mr Hornblower, é baixinho, apressado, espevitado, chefe de uma família monoparental sem passado.
The Skin Game estabelece uma deliberada oposição maniqueísta num primeiro momento. Enquanto a filha dos Hillcrists anda a cavalo e se afasta no quadro ao misturar-se à natureza num lindo plano aberto, o filho dos Hornblowers interage com uma paisagem de concreto e portões. Os trabalhadores nas terras dos aristocratas são dóceis, os dos burgueses mal educados, querem resolver um problema na medição de força. Numa projeção do velho Hillcrist, a paisagem natural de melodrama familiar se transforma num amontoado despersonalizado de arranha-céus à Metrópolis (1927), de Fritz Lang.
E o filme seguiria assim, os condenáveis e seus juízes, o anticorpo que combate a doença, preto no branco, não fosse um elemento para tirar o véu das aparências: a imoralidade. Quando ela se torna uma variável nas relações das duas famílias, o espectro do passado torna-se palpável e o real julgamento será feito: quem, de fato, não possui a virtude?
Quem dá mais?
Evidentemente que em se tratando de um filme de Hitchcock, cineasta com o qual nos acostumamos a encontrar as informações necessárias dentro do quadro, num movimento de câmera que revela/esconde, as cenas de The Skin Game têm muito falatório.
Apesar de ser um caminho possível estabelecer comparações deste com a fase muda inglesa ou a fase americana, fazê-lo é também uma forma de ignorar o que lhe é específico já que feito num momento de transição do mudo para o sonoro. Validar The Skin Game a partir das condições estabelecidas em outros momentos do cinema seria como comparar isoladamente os Bulls dos anos 1990 com os Celtics dos anos 1960, o Brasil da Copa de 1958 com o da de 1970: atropelar o básico, que é o entorno, as abismais diferenças de contexto.
Então nem vale bater na tecla dos diálogos extensos na primeira cena, assim como a longa e desnecessária conversa da filha com o velho Hillcrist. São obviamente inferiores à abertura de um Frenesi (1972), por exemplo, mas são o registro de um entorno cinematográfico, do contexto que lhe é específico. Não dá para ler The Skin Game sem considerar o momento de transição.
Dito isso, vale apontar que o filme dá o primeiro grande salto na sequência do leilão. Após apresentações e a fatídica declaração de guerra entre as famílias, os velhos Hillcrist e Hornblower vão para um leilão disputar as terras vizinhas de uma também aristocrata decadente. Entra em cena Chloe, noiva de Charles, o primogênito dos Hornblowers.
A sequência do leilão guarda duas pérolas. A primeira é a aceleração no ritmo. No climax da disputa pelas terras, Hitchcock opta por uma câmera subjetiva do leiloeiro que navega freneticamente pelos rostos dos contendores. “Quem dá mais? Cinco mil libras… cinco mil e cem… e duzentos, e trezentos… e quatrocentos…”. Talvez este seja o primeiro momento no longa em que um movimento de câmera representa com tanta categoria o sentido de uma cena.
A segunda pérola é a introdução do subtexto da paranoia, que irá dominar a segunda parte de The Skin Game, transformando em uma observação da imoralidade o que era até então um filme sobre as conflitantes visões de mundo de um burguês e um aristocrata.
Chloe, a noiva também misteriosa, é a ignição que leva o filme para outros rumos. Inicialmente, seu corpo nos é mostrado sob roupas sofisticadas, detentor de força para questionar o porquê de os Hillcrists não dispensarem nem a ela e nem aos outros Hornblowers um tratamento respeitoso.
Esse corpo que brevemente carrega potência e charme será rapidamente substituído por outro, acometido pelo esgotamento da paranoia. Seu olhar perde confiança e ganha medo: Chloe se levanta, senta, enxuga o suor da testa, diz que está com dor de cabeça, aperta as mãos que escondem o rosto envergonhado, arregala os olhos, ajeita o cabelo. Na sutileza do desenvolvimento do personagem basta apenas manter o colo à mostra para escancarar uma magreza que denota fraqueza e falta de proteção.
Chloe carrega os gestos e a fala precavida de quem vive sob o medo. O que desperta esse estado de alerta é um passado desenterrado e que lhe cobra a conta pela ausência de virtude. Descobrimos em cochichos, diálogos entrecortados e revelações fora do quadro que ela foi, antes de comprometer-se com Charles, uma prostituta. Melhor: ex-acompanhante de homens casados, pois não se diz uma vez sequer a palavra “prostituta” no filme.
Quando o passado bate à porta e ela se vê vítima do tal jogo sujo que dá titulo ao filme – seu segredo será utilizado como carta na manga num fétido esquema de chantagem –, Chloe desmaia. Nesse momento, as memórias de cinefilia se cruzam e The Skin Game se encontra com Um Corpo que Cai (1958).
No trailer deste, lê-se no dicionário: “Vertigem – uma sensação de tontura, uma zonzeira na cabeça; no sentido figurativo, estado no qual todas as coisas parecem tomadas por uma avalanche de terror”. Se para o detetive Ferguson o que lhe causa pavor e a consequente tonteira é a altura, para Chloe é o passado, representado na figura do seu ex-patrão. Tal como Stewart fica tonto e desmaia ao olhar para baixo e perceber o abismo, Chloe perde os sentidos ao perceber que seu passado veio poluir o presente. Distantes 27 anos, os personagens de ambos os filmes compartilham o “estado no qual as coisas parecem tomadas por uma avalanche de terror”.
A condenação
Este texto começou com uma generalização a respeito do passado como fonte de virtude ou como fonte de condenação de um personagem. E o passado de Chloe que a colocará involuntariamente no centro da briga entre Hornblowers e Hillcrists faz dela uma personagem que dialoga também com outro célebre filme sobre um “pária” vítima de chantagem.
Em 1961, Victim foi o primeiro filme no qual se pronuncia a palavra “homossexual”. O longa fala justamente de uma quantidade sem número de gays enrustidos que são chantageados sob a ameaça de verem a orientação sexual deles revelada. Um deles, Melville Farr, promissor advogado, se vê no dilema: denuncia o caso à polícia, perde o status social, destrói o teatro heterossexual com a esposa ou mantém-se numa vida de repressão, num constante estado de medo.
Sintomaticamente, no Brasil o filme saiu como Meu Passado me Condena. Novamente o passado a justificar uma condenação social a um corpo que “pecou”. Mas os anos 1960 não são como nos 1930.
Para o corpo assustado de Chloe o único caminho era murchar até morrer, garantindo, pela metáfora, que a eliminação do desviante seria necessária para que a estrutura social seguisse imaculada. Para Melville Farr, entretanto, como os tempos são outros, é possível romper o silêncio, desafiar a carta na manga que garante o terror, que causa o gesto calculado.
E se nos esforçássemos mais para traçar diálogos seria possível imaginar essa personagem de Hitchcock, caso sobrevivesse, como uma das vítimas no hospício de excluídos de Samuel Fuller em Paixões que Alucinam (1963).
Mas em 1931, dado o contexto do cinema e da sociedade que ele reflete/reinterpreta, a morte da Chloe de Hitchcock é necessária e tem efeito didático duplo: para o espectador, orientado a encarar com normalidade o expurgamento do pária, e para os próprios personagens, que finalmente percebem o quão daninho é seu jogo sujo.
Afinal, quem é mesmo imoral: os sem-passado Hornblowers ou os arrogantes Hillcrists? Apenas com a morte de Chloe que se dá a rachadura nas aparências e chega-se à essência.