“Every nigger is a star” (“todo crioulo é uma estrela”), diz Kendrick Lamar, sampleando o clássico de Boris Gardiner, em To Pimp a Butterfly, o álbum que me fez seriamente questionar se não seria ele o melhor da história do rap (desculpem-me Nas, Tupac, Racionais, Eminem, Sabotage). A letra continua: “Who will deny that you and I and every nigger is a star”.
Quem irá negar? Basta acordar de manhã, abrir os olhos e lá está o mundo pronto para negá-lo. Manhã após manhã o preto acorda tendo de lembrar a si mesmo que sim, ele é uma estrela.
O que me leva a falar de Tongues Untied (Línguas Desatadas), que a mostra New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política trouxe ao Belas Artes via parceria com a Caixa. Quando se é apenas um nigger é preciso se lembrar do quão estrela se é, quando se trata de um queer nigger então a lembrança da estrela tem de ser feita em dobro e em voz ainda mais alta.
Não há, na minha memória cinéfila, nenhum filme que seja tão agudo em lidar com essas duas esferas – preto e gay – juntas, como parte de uma mesma identidade. Marlon Riggs, o diretor e uma das forças criadoras de Tongues Untied, o faz com frontalidade tal que desarma inteiramente quem testemumha o discurso poético de seu filme. Riggs parte de um diagnóstico de marginalidade múltipla: descompasso com a sociedade heternormativa e racista, descompasso com a pauta do movimento gay e descompasso com o próprio movimento negro.
O primeiro é óbvio. O segundo, nem tanto: Riggs vai para o paraíso gay – o distrito de Castro em São Francisco, EUA – apenas para descobrir que até mesmo lá ele é invisível. O terceiro menos ainda: nos dois eixos históricos de militância negra americana (o religioso, Martin Luther Kingiano-We Shall Overcome e o Listen Whitey-Fight the Power armado dos Panteras Negras), não há encaixe nem em um, nem em outro. Riggs tem uma coragem ímpar de penetrar em sua própria vivência e torná-la material criativo que ilumine almas outras.
Muitos cortes e experimentação poética (que me parece um termo mais adequado do que “encenação ficcional”). Permite-se um atravessamento das falas: a organização do discurso não está estruturada de modo a conformar o raciocínio, mas para criar uma fruição no campo sensorial. Fala-se muito no filme, mas sente-se muito do lado de cá, de quem assiste. O registro racional-documental é seguido da fala poética-afetiva, intercalado com a performance do corpo, novamente atravessado pelas vozes externas de agressão, respondido com a ternura de uma performance musical e complementado pela filmagem documental de um protesto. A multiplicidade das origens dos campos estéticos aos quais essas vozes discursivas pertencem traz muita riqueza para a experiência.
Quando Riggs deposita suas energias na imagem, surge a evidência do corpo negro. A partir daí Riggs desenvolve a segunda parte da equação. Se os pretos gays são colocados nesse lugar marginal onde o caminho “natural” (e sabemos como em sociedade nada é natural ou essencial, mas sim construído nas e pelas relações) é cultuar e desejar o corpo branco, Tongues Untied propõe o contrário: “homens pretos amando homens pretos é um ato revolucionário”.
Não há, no filme, momento estético e político mais forte do que quando ele justapõe duas imagens simbólicas: as marchas e demonstrações no começo dos anos 60, em especial a de Selma a Montgomery, com homens negros gays, trinta anos depois, berrando “black-black-black, gay-gay-gay”. Forte porque nos diz que a força motora está justamente em pensar o específico de ser “black” and “gay”, mas também porque pega uma narrativa da qual esse grupo esteve excluído – neste texto para a Interlúdio sobre o longa Selma eu comento um pouco sobre isso – e diz, em tom de provocação: “sim, essa história da qual tentaram me apagar também é minha”.
Para além da compreensão por uma perspectiva histórica, há aquelas obras que desnudam a alma. Giovanni (Giovanni’s Room, de 1956), de James Baldwin, é um marco que temos na literatura. Tongues Untied, um filme ainda menos conhecido do que merece, mesmo depois de 25 anos de sua feitura, o é no cinema. Se W.E.B Du Bois apresentou “the souls of the black folks”, Riggs nos mostra “the souls of the gay black folks”. Ou, ao menos, uma porção significativa dela, especialmente a que se refere ao campo da construção do afeto e do desejo.