Crianças da Tempestade: a resiliência em Lav Diaz

*originalmente publicado no Cine Marcado como parte integrante da cobertura do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba 2015

Primeiro plano, longo: a chuva intermitente que incide sobre a água. Penso: Lav Diaz (cineasta pouco visto, mas fetichizado como “aquele cara que faz filmes que duram dez horas”) está se repetindo? Passam alguns minutos, as crianças brincam numa avenida alagada. Constato: estamos, sim, em terreno já pisado pelo realizador filipino – as tragédias naturais, em especial as chuvas, e as tragédias históricas, em especial a Ditadura Marcos (1973-86), são a matéria essencial de sua obra –, mas o ponto de observação é outro: em Crianças da Tempestade, Livro 1 (Mga anak ng unos, Unang aklat, 2014) o peso e a melancolia recaem sobre as crianças.

A resiliência, possivelmente o principal traço dos personagens de seu cinema (não fosse ela, como teria sobrevivido a mulher em Florentina Hubaldo, CTE?), novamente se apresenta. Acompanhamos crianças cujas famílias foram vitimadas pelo tufão Yolanda e como se dá a continuação de suas vidas após a devastação.

Antes, porém, de explicar ou de dar informações, Diaz apenas filma a situação e a rotina, modulando as sensações, dando peso à experiência de assistir àquelas imagens. Apenas quando tivemos tempo de estabelecer uma relação com aquelas pessoas – seja afetiva ou racional – Crianças da Tempestade, Livro 1 nos informa em que contexto histórico suas vidas estão inseridas. Começa-se pelo estranhamento: o que faz aquele navio na beira de estrada praticamente atravessando o asfalto? Por que tanto entulho acumulado? Por que barracos e não casas? Por que crianças separam lixo do córrego com vagar?

As respostas vem com o tempo, e é justamente essa liberdade de não limitar, a priori, a duração do plano que permite perceber as nuances. Volto à resiliência: a destreza dos garotos ao andar sobre uma mureta estreita me diz que há muito aquele é o espaço de socialização deles; ou a naturalidade que um se joga na água enquanto carros e moto-táxis transitam normalmente; ou o cachorro manco, que surge praticamente como uma imagem-símbolo, para quem procura esse tipo de representação, daquelas vidas.

Há sensações que só a paciência da observação proporciona. Dois garotos vão para uma montanha de entulhos e cavam, cavam e cavam mais um pouco. À procura de quê? Não há razão, ao menos por ora (muitas sequências depois descobriremos haver um motivo). Naquele momento, a repetição do gesto de cavar sem encontrar o que se busca causa um sentimento agudo e incontornável de tristeza.

Dado o registro documental, formato menos comum na obra do filipino (o único, salvo engano, é sobre o assassinato dos críticos Nika Bohinc e Alexis Tioseco), é bastante tentador classificar as crianças do filme em categorias sociais – os desfavorecidos –, ainda mais pelas imagens em preto e branco que inesperadamente me trouxeram à superfície memórias de filmes do Cinema Novo (apesar de Diaz não ter nem a pegada de denúncia, nem a urgência de união terceiro-mundista dos realizadores brasileiros daquele momento, muito menos uma filiação estética – ou seja, Diaz não tem nada a ver com o CN).

Mas ao lado dessa tristeza há o passatempo. Não estou certo de que possamos afirmar uma moral em Crianças da Tempestade, Livro 1. Talvez seja mais prudente dizer que ele não deixa de observar que o que a fonte da tragédia – a água – é também alegria, um playground. É esse sentimento que transborda na montagem final das crianças pulando na água, repetidamente, se esbaldando como qualquer garoto de perifieria nos anos 1990 num brinquedo aquático do antigo Playcenter paulistano.

Diaz rebobina, reapresenta as imagens de brincadeira em câmera lenta. Cria o distanciamento. Está aí o componente mais marcante da experiência: saborear, simultaneamente, um sentimento de tristeza aguda, de luto, com a diversão do passatempo, do brinquedo, do jogar basquete com uma bola murcha arremessada contra uma cesta improvisada.


Falando no diretor filipino, recupero dois textos sobre seus filmes. Um acerca de Do que vem antes [leia aqui] e outro é uma entrevista que fiz com ele quando da retrospectiva na Mostra de São Paulo em 2013 [leia aqui]. Ambos escritos para a Interlúdio.

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