*originalmente publicado no Cine Marcado como parte da cobertura do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Cinema de Curitiba 2015
Não foi o melhor filme do dia – João Bénard da Costa – Outros amarão as coisas que eu amei tem mais lastro, permanência e beleza –, mas Sistema Prisional 4614 (Haftanlage 4614) é o que mais me motiva a escrever. Porque é no filme de Jan Soldat que o meu lugar como espectador passa longe do conforto. Porque para ter uma relação frontal é preciso se “posicionar” – ou melhor, questionar qual lugar de observação e de fala por meio do qual se relaciona com o filme.
Sistema Prisional 4614 é um filme de fetiche com homens que se hospedam numa prisão montada especialmente para infligir sofrimento e tortura. Soldat faz um registro muito direto: câmera fixa, frontalidade, descrição. Diversidade de algemas e amarras, espancamento, afogamento simulado (waterboarding) e até emulação de uma solitária na qual a luz não se apaga.
Se uma aproximação mais polida e menos ameaçadora seria apenas investigar as personalidades dos personagens (“o que motiva esses homens a desfrutarem de práticas que na sociedade são classificadas como degradantes?”), Soldat vai direto ao front: cá estão a dor física e mental e cá estão pessoas que se excitam por elas.
O que se passa ali em Sistema Prisional 4614 é um grande ato de encenação. O torturador é um legítimo metteur en scène. Pois bem, se o torturador encena e Soldat faz a mediação dessa encenação para a tela de cinema, qual o lugar do espectador? É isso que há de interessante no filme: não é o lugar dos torturados que está para ser pensado nessa relação, mas o do lado de cá, de quem assiste.
Ocupando o lugar do que assiste às imagens, é socialmente confortável e esteticamente fácil adjetivar o filme de, por exemplo, bizarro, e seguir com a vida, criando uma alienação entre um “eu” e “essas imagens” – eu aqui, elas lá, a léguas de distância. E esse é um procedimento mais comum do que estamos dispostos a admitir entre nós, críticos, em filmes que apresentem o desejo sem tergiversar.
Recupero um comentário en passant feito pela holandesa Dana Linssen, crítica da Filmkrant: “Me pergunto se dizer [que um filme com sexo explícito é] ‘chato’ não seria justamente um mecanismo de defesa do crítico, racionalização ou uma cortina de fumaça para não se relacionar com o/um filme… quantos críticos acharam Nínfomaníaca ou 50 Tons de Cinza ‘chato’? […] O que aconteceria se um crítico admitisse ter ficado excitado? Poderia esse dado fazer parte do discurso crítico e analítico?”.
O que motivou a provocação de Dana foi a reação a Love, de Gaspar Noé. Aparte gostar ou não de seu cinema (eu não gosto), o que importa é menos o filme em si e o que acontece do lado daqui. Sistema Prisional 4614 me fez questionar meu lugar de espectador, de investigar mecanismos de alienação camuflados por termos absolutos (geralmente os adjetivos) aos quais recorremos para não admitir qualquer tipo de implicação com o filme – e se o sexo tem camadas e camadas de repressão, fetiches como esses do documentário de Soldat são ainda mais ativadores de julgamento social.
Olhar para o outro do filme é olhar para si mesmo. Me parece ser essa uma das vontades de Soldat ao frontalizar seu filme. Postura reflexiva colocada desde o primeiro plano, filmado a média distância, de um waterboarding, no qual o master executa a tortura e, no meio da performance, mira a câmera de relance, reconhecendo que está agindo para um observador.
É nessa olhada de canto que está todo o espírito do filme, pois ela transborda a seguinte pergunta: e você, espectador, onde está implicado nessa relação?
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