Como a história das pessoas negras no cinema me ensinou que a constante são movimentos cíclicos e interrupções bruscas, costumo adotar algum nível de cautela nas vitórias. Isso não impede, contudo, de reconhecer que a retrospectiva Soul in the Eye, apresentada aqui no Festival de Roterdã entre 24 e 28 e com curadoria assinada por Janaína Oliveira, não só representa um evento de proporções históricas como já deixou alguns frutos visíveis.
Cito “proporções históricas” não de forma hiperbólica, mas literal: olhemos para trás e busquemos num festival europeu de primeira linha ou médio porte. Tentemos encontrar uma mostra que jogou tão forte luz nos trabalhos de diretores negros brasileiros, seja da novíssima geração, quem já está no metiê há um tempo e também os veteranos. Claro que isso diz muito não só sobre o passado, mas acerca do presente também. O tempo nos permitirá compreender o quão estruturais são essas aberturas de grandes instituições majoritariamente brancas – no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa.
O impacto no presente, contudo, aponta algumas coisas que merecem ser observadas com carinho:
Circulação do filme e exposição dos realizadores
Estar presente nesses dias – ainda estou congelando no frio de Roterdã – me permitiu ver pessoalmente que sim, a presença dos corpos é indispensável. Tenho visto muitos diretores sendo abordados por público local, internacional e curadores de festivais que desconhecia. Até mesmo algumas pessoas-chave da indústria sendo expostas aos filmes e aos pensamentos de seus realizadores. Estão ou estiveram aqui no IFFR cerca de 20 pretas e pretas: diretores, atores, fotógrafos, roteiristas, assistentes de direção, mulheres e homens.
Novamente, o tempo. Ele nos permitirá avaliar o quanto disso é momentâneo e quais frutos virão daí. Mas ampliar as possibilidades de que muitos desses diretores continuem fazendo filmes não é nada pequeno, dado que a presença preta no cinema é, uma vez mais, atravessada por ciclos e interrupções.
Trânsito internacional de um trabalho curatorial
Janaína Oliveira, a curadora convidada, é minha amiga, então algumas das palavras a seguir podem ser atravessadas pelo afeto. Tentando, contudo, observar o trabalho, sinto orgulho de ver uma preta falando para além das fronteiras brasileiros – algo que Janaína já fizera nas suas andanças pelo Fespaco e pela Howard U. Intuo que a qualidade do trabalho e a exposição de um corpo negro de mulher num espaço como esse possa deixar a porta destravada para outros corpos das margens.
Convido especialmente uma espiada em cada um dos programas de curtas – especialmente para aqueles que têm familiaridade com o grosso dos filmes – e observem as caminhadas internas propostas filme a filme.
Convidar para dentro
Ainda no assunto curadoria, tanto Tessa Boerman como Peter van Hoof funcionaram como facilitadores da presença desses filmes – e de muitos corpos – aqui no IFFR. Tessa também atuou na composição do programa do dia 27, que envolveu a masterclass com Gabriel Martins, performance de Jota Mombaça e conversas com os realizadores presentes.
Mas por que estou dando cookie para uma curadora preta holandesa e um curador branco holandês? Porque esse gesto ilustra o que ainda pautamos no Brasil, que é: como quem detém o poder pode contribuir de forma prática com quem está atrás da cortina, invisibilizado pelo racismo estrutural. Essa lição precisa ser aprendida: quando você detém a chave, esforce-se para passar a senha do cadeado não só para os filmes, mas para outros atores do tabuleiro que trabalham para a vida dos filmes quando prontos.
Falo sem ilusão ou idealização que transforma em heróis duas pessoas. Nós, pretos e pretas brasileiros, temos muito a falar e nos ouvir é também interesse da outra parte. Mas ressalto a práxis: não adianta ou reconhecer privilégio, mas chamar sempre os mesmos curadores, programadores, comissões de editais, professores, consultores…
Criação e manutenção de espaços próprios
Quando se fala dos trabalhos de pessoas cujos corpos correm o risco da evaporação instantânea se “confundidos” numa esquina errada e na hora errada, tudo é processo. As compreensões e leituras não surgem de forma repentina. Digo isso porque voltou-se a discutir com força entre os pretos brasileiros a criação de espaços próprios e nossos. Isso precisa estar no cinema. Reforçar e reconstruir os processos em andamento, mas também iniciar novos. De maneira sã e sadia, de forma que passemos a viver outras questões, fora do registro comum de “um corpo negro que tem de navegar por uma estrutura branca”.
Redescobrimento de filmes e trabalhos
Num de seus textos para a Cinética, Juliano Gomes, crítico e realizador, falava sobre o poder da brisa para os filmes. Não sei se o que irei descrever se relaciona integralmente com o que ele apontava, mas mediar a masterclass de Gabriel Martins aqui no IFFR me fez pensar num código disruptivo.
Nos primeiros 25 minutos Gabriel trabalhou com uma apresentação em slides que continha montagens-gozação cuja sensibilidade carregava a mesma energia que atravessa Mundo Incrível Remix. Para além da piada, algo sério. Olhem para as outras masterclass. O que encontram? Uma performance bem codificada do que é um corpo e uma fala de diretor de cinema. A performance de Gabriel trouxe um joie de vivre poderoso (“pretos podem sorrir também”) para falar de coisas sérias (criação a partir da precariedade) e bastante honestas (processos de identidade).
Estar aqui também me permitiu revisitar não necessariamente os filmes – pois quase todos já havia visto pelo menos duas vezes e muitos deles pelo menos quatro vezes. Revisitar, sim, o ato de assistí-los e como expô-los a diferentes contextos dispara outras experiências. São muitos os exemplos, mas cito um: Quantos eram pra tá?, que assisti aqui pela quinta vez. Ver pessoalmente a resposta a esse e outros filmes me relembra algo básico, mas importante: cada sessão em um território distinto pode levar um filme a ter vidas não imaginadas, mesmo os filmes que se conhece plano a plano.
Outras situações que me ocorrem são uma conversa que tive com uma produtora americana – preta de pele clara – que adorou Ilha, longa que eu guardava o receio de que não se comunicaria muito para fora do Brasil. Já com Temporada, foi gostoso estar na sessão e ver o sorriso de um espectador asiático frente ao plano final ou a espetadora indiana que reconheceu o esforço do André (e da turma da Filmes de Plástico) em filmar Contagem de forma diferente, algo que ela gostaria de ver existindo nas lentes apontadas para seu país.
Antes de partir
June Givanni, lenda viva da porra toda, esteve por aqui em Roterdã por alguns dias. Curadora, pesquisadora, criadora e mantenedora de um arquivo de Cinema Africano (e da Diáspora) em Londres, Reino Unido. Quando digo que ela “esteve aqui” me refiro a estar de fato presente: pés fincados em muitas sessões e debates. Papel e caneta em mãos, anotando, anotando. O esforço de documentação que ela faz é contínuo.
Vê-la aqui presente e ativa é uma tremenda inspiração. Depois de mais de 30 anos no jogo e ainda ter tamanha energia de engajamento?!