Simplesmente impossível parar de falar em Cópia Fiel que, me contaram os amigos de crítica, fez um tremendo sucesso na primeira semana em cartaz – 10 mil espectadores – provavelmente por causa do fator Juliette Binoche.
No filme, James (William Shimell), um escritor que vai à Itália para falar sobre seu premiado livro Copia Conforme, defende que pouco importa o que é original ou o que é reprodução na arte. O ponto nevrálgico e a construção de sentidos se dá pelo olhar do observador.
James e Elle são casados, como o filme nos induz a pensar, apesar dos desvios? Não interessa! Afinal, a dinâmica que se estabelece na (recém?) relação deles é tão verdadeiro, sincero e verosímel quanto qualquer outra relação duradoura. O nosso olhar de espectador é quem vai responder a pergunta.
Para ilustrar a questão, reproduzo um pedaço do texto de João Bénard da Costa, que me acaba de ser apresentado por Sérgio Alpendre por causa do curso de cinema japonês, sobre Os Amantes Crucificados, de Kenji Mizoguchi – Alpendre reproduz a integra do texto na apostila do curso.
Não sei quem é que inventou a história do “sorriso do eterno feminino” a propósito da Gioconda. Sei é que há quase cem anos ninguém pára no Louvre diante do quadro, sem observar primeiro o sorriso, depois o eterno e por fim o feminino. E, só depois de os ter inventariado todos, é que balbucia um lugar-comum qualquer sobre a impressão geral que a chamada Mona Lisa, vista ao natural, lhe provocou (hoje, com aqueles enormes vidros à prova de bala que para lá puseram, é cada vez mais difícil ter qualquer impressão).
Visitantes mais sofisticados já não vão nessa do “eterno feminino”. Mas param mais ao lado, em frente de A Virgem, o Menino Jesus e Santa Ana, para descortinar, nas três figuras, o abutre “sobreimpresso” que Freud lá viu e deu origem a um dos seus mais célebres ensaios sobre conteúdos manifestos e conteúdos latentes.
Depois da “leitura” de Foucault de Las Meninas (quanto a mim, completamente despropositada, mas essa é outra história) quantos visitantes foram ao Prado, não apenas para ver o quadro de Velázquez, mas para o comparar com a interpretação feita em Les mots et les choses? Eu próprio já levei Os Cadernos de Malte Laurids Brigge para o Museu de Cluny a fim de reler as páginas de Rilke sobre as tapeçarias de La Dame à la Licorne enquanto as revia com os olhos dele.
Proust foi talvez quem melhor escreveu sobre estas duplas visões: a do autor de uma obra e a do voyeur dessa obra. E, ele próprio, acrescentou à visão de Delft de Vermeer o “petit pan de mur jaune”, hoje quase tão célebre e quase tão citado como o próprio quadro, embora durante cerca de 250 anos ninguém o tivesse visto.
É completamente irrelevante perguntarmo-nos, como fazem alguns, mais cépticos ou mais cegos, se o que Freud viu, o que Rilke viu, o que Proust viu, está ou não está na obra em que o viram. Toda a visão é ideal (como toda obra de arte) e só por simpatia (no sentido etimológico da palavra) nos aproximamos dela. Se bastasse ter olhos para ver, os cegos seriam bem mais desgraçados e bem mais minoritários.
Também nada adianta perguntar – como muitas vezes se pergunta quando a evidência das duas visões é irrecusável – se tal pormenor ou tal sentido teriam sido “premeditados” pelo autor. A Gioconda pode continuar a ser o “eterno feminino”, mesmo que se venha a provar (como alguns sustentam) que o retrato não é de uma mulher mas de um rapaizinho; o quadro de Vermeer continua a dar-nos Delft em 1665, mesmo que em Delft nunca tenha havido tais cor-de-tijolo e tais cor-de-rosa e que Vermeer ficasse imensamente estupefato se lhe falassem de um “petit pan de mur jaune”. Sempre outras mãos pintaram ou escreveram pelas nossas mãos e sempre o amador se transformou na coisa amada.
Vai muito longo o preâmbulo. A coisa amada que hoje vos queria dar a ver chama-se Chikamatsu Monogatari. Batizaram-na no Ocidente como Os Amantes Crucificados (em Portugal nunca foi distribuída comercialmente) e realizou-a o japonês Kenji Mizoguchi ou Mizoguchi Kenji. Em 1954.
A íntegra do texto pode ser encontrado no site da Foco.
Em tempo: no post anterior sobre Cópia Fiel, o leitor Enaldo fez um comentário jocoso que, apesar do tom de brincadeira, é pertinente. Sim, Enaldo, quem disse que ela não estaria jogando todas as suas frustrações sobre o pobre coitado do escritor?