O mais curioso do caso do assassinato de Marcos Kitano Matsunaga não é nem a natureza do crime, mas esse lugar de propriedade que o jornalismo elege para as pessoas. Se fosse o Zé da Silva, seu nome seria citado nos jornais apenas como o Zé da Silva, sem privilégios simbólicos possibilitados pelo capital. Mas como Marcos Kitano Matsunaga era alguém com dinheiro, ele merece uma vaguinha mais nobre nas notícias. Em vez de seu nome, o que vem antes é seu cargo: “Executivo da Yoki”.
É como se, por conta de seu lugar na escala de produção (patrão), Marcos merecesse um balangandã a mais ao ser citado na imprensa. Como se sua morte fosse mais morte que outra qualquer.
Elize Matsunaga, sua mulher, confessou à polícia ter cometido o crime. No depoimento, disse que discutiu com o marido, levou um tapa, perdeu a cabeça e atirou em Marcos.
O jornal Meia Hora, que tem esse estranho dom de captar a percepção popular com trocadilhos fenomenais, deu o seguinte título à matéria do crime: “Essa aí não pipoca”. A linha fina é a que segue: “Viúva encara a polícia de frente, confessa que estourou com dono da YOKI e botou corpo em saquinhos”.
Desde que li sobre o caso, não consigo parar de pensar em Traição em Hong Kong (Boarding Gate), filme policial de Olivier Assayas. É uma produção mediana, preciso reconhecer, mas talvez sem ela, sem esse exercício no gênero, Assayas não conseguiria ter acertado tanto como fez em Carlos, filme/minissérie que depende muito do clima de perseguição ao protagonista.
Traição em Hong Kong mostra duas etapas na vida de Sandra, uma ex-prostituta (Asia Argento). Na primeira parte, tentando reviver os traços de uma paixão obsessiva com o empresário Miles (Michael Madsen). Na segunda, já como fugitiva da polícia, caindo na real quanto a uma outra paixão.
O filme de Assayas faz o que justamente não vi a imprensa conseguindo fazer: descobrir as razões para um crime — não factuais, mas humanas. Toda a primeira parte do filme é de construção de atmosfera, compreensão da relação de Sandra e Miles. Ele lembra dos bons momentos, ela recorda como foi usada. Ela recupera uma cena idílica, ele a acusa de saber de tudo.
Ela toma uma decisão: quer romper, não o ama mais, já deu. Ele, com um magnetismo incrível, exerce sobre ela um poder indescritível. Ela está presa a algo invisível, não tem força para resistir. Ele exercita o gozo provocado pelo poder. Ele se ajoelha, deixa ela algemá-lo – vão repetir uma cena sexual sadomasoquista que já os excitou no passado. Ela pega o revólver e o mata. Assim, “do nada”, de repente.
Aí me veio automaticamente o caso de Marcos e Elize, mas também a tal notícia do Meia Hora: “Viúva encara a polícia de frente, confessa que estourou com dono da YOKI…”.
Com o imediatismo do jornalismo e a pressa, talvez a gente nunca tenha a compreensão total do que fez com que Elize cruzasse a linha do matar (sobre a qual Crime e Castigo, de Dostoiévski, nos dá tamanha dimensão). Em quais cenas de violência física já estiveram envolvidos o casal Elize e Marcos?
Resta ao cinema, mesmo que num filme mediano como Traição em Hong Kong, dar a dimensão dos atos humanos. Pois, pelo que parece a imprensa já perdeu essa habilidade. O que interessa mesmo é só registrar que morreu uma pessoa cujo nome é “Executivo da Yoki”.
PS: este post é dedicado ao cineasta Daniel Ribeiro, o primeiro dos meus amigos no Facebook a notar como só se referiam ao caso como o “Executivo da Yoki”.