Cadê o público? Vamos, me digam, cadê o público? Assistir a uma sessão de À Beira do Caminho com apenas quatro pessoas na sala é certamente uma constatação deprimente de que as coisas vão num ritmo lastimável. Quatro pessoas num sábado à tarde, num cinema de shopping, num filme de Breno Silveira, o cara que supostamente é o paradigma do filme de público?!
Presenciar tal cena me desperta melancolia, ao mesmo tempo que me instiga uma vontade incontrolável de dar uma grande banana para os ideólogos que enchem a paciência com o discurso “o problema é que o cinema brasileiro não faz filme de público”. Melhor do que uma banana, fico com vontade de ir me deitar, como diria Sérgio Sampaio.
Não se insinua aqui, veja bem, que Breno Silveira calcula na feitura de cada plano se tal plano será aquele tal a agradar o público. Não me parece que ele seja um cineasta mesquinho ou hipócrita, mas sim um cara sincero na realização de seus filmes, os quais demonstram, aí sim, uma vontade de emocionar. Não sou o primeiro a perceber isso, mas vale relembrar: cinema, para Breno, é emoção.
Mas por que falo do público? Por uma ira ao ter de escutar aqueles argumentos pseudo-imparciais que se renovam a cada “filme de arte” que estreia e faz apenas centenas de pessoas no primeiro fim de semana. Para eles, “não dá para o cinema brasileiro ficar fazendo só Os Residentes”, “não dá para os cineastas fazerem filmes só para os amigos irem ver”.
As quatro pessoas – vou repetir: numa tarde de sábado e num cinema de shopping – na sessão de À Beira do Caminho só servem para provar que essa discussão sobre “filmes de público” é muito mais complexa do que os discursos levianos querem fazer crer. Nessa cada vez mais incompreensível equação Como Fazer um Filme Ser Visto, é preciso apontar que a parcela de covardia dele, o público. Covarde para fazer corpo a corpo com um “filme de arte”, covarde para um “filme de público”.
Pensar nesse público cada vez mais covarde – repito: não acho que Breno Silveira calcule milimetricamente o que é o gosto do público na hora de filmar, estou falando dos “pensadores” do cinema brasileiro – me parece uma miragem, um equívoco. Me parece loucura mirar essa massa amorfa chamada público que sequer demonstra vontade alguma de manter uma relação autônoma com o cinema. Um público bocó.
O gosto e a técnica
Além desse aspecto da boçalidade do público, existe o filme. E À Beira do Caminho me cai como um mais um filme sincero em que a emoção é o que determina as escolhas dramatúrgicas. Algumas delas desagradam meu gosto – por vezes preferia o silêncio à ilustração sonora –, mas vejo como respeitável o caminho que o filme vai tomando.
Existe um domínio técnico do roteiro em estabelecer diretrizes básicas – conflitos e motivações dos personagens, os obstáculos a serem superados superados, os plot points inseridos nos devidos lugares para fazer o filme caminhar para frente, o paradigma da página 10 etc. Ou seja, pode-se desgostar do filme, o que é inteiramente legítimo para um espectador de cinema autônomo e ativo. Pode-se dizer também que o exagero das emoções incomoda.
Vejam bem, tudo isso é questão de gosto – e é bom que não só tenhamos os nossos, mas que assumamos, pois é preciso sair desse lugar falacioso de “um filme não me toca”. De técnica, pura e simples, o filme mostra precisão. E daqui em diante vou apontar qualidades no filme, assumindo o posto de alguém que gosta de À Beira do Caminho.
Gosto de como João Miguel segura com encantamento um plano mais longo. De como esse cara permite uma variação incrível, porque João é crível tanto como jovem adulto de barba feita, cara limpa e confiante no que a vida lhe reserva quanto como o não mais tão jovem maltratado pela vida, barbudo, caminhoneiro e amargurado.
Gosto da carta de palavras riscadas que o pai deixa à filha – porque no drama do personagem João palavra alguma faz sentido, a não ser “me desculpe” e “me perdoe”, as únicas que precisam ser ditas, as únicas que permanecem numa carta rabiscada num caderninho amassado.
Gosto do uso ilustrativo das canções de Roberto Carlos e de como elas colam no filme. Mesmo que com a poeira já baixa do pós-sessão perceba-se que Amigo não entra na textura do filme com a mesma naturalidade de Esqueça, Só Vou Gostar de Quem Gosta de Mim e O Portão. Porque, pensando bem, À Beira do Caminho é como uma canção romântica daquele Roberto Carlos dos anos 70: não reinventa a roda, mas faz um arros e feijão gostoso. Canções que colam sua genuína emotividade e crença no que está dizendo. Essa é uma das razões que eu respeito os filmes de Breno Silveira: simplesmente me passam uma sensação de que ele acredita no cinema que faz.
Gosto dos momentos de sofisticação num filme que se equilibra entre a busca da inteligibilidade e a sutileza, o revelar e o esconder, o dito e o não-dito. Destaco um. João e Duda param num local para colocar no caminhão um carregamento de melões. Duda quer ajudar, pega com esforço uma caixa. João não deixa, interrompe, meio brutamontes que é o jeito dele. E justifica para o garoto. “Isso é serviço pra homem, menino. A carga é sensível e precisa chegar intacta em São Paulo”. Não precisa viajar longe para perceber o duplo sentido da frase: a carga sensível não são os melões, mas a carga humana. É João que não sabe se vai chegar inteiro em São Paulo, não os melões!
Gosto também da subtrama (ok, estou exagerando chamar de subtrama, mas vá lá) dos dizeres dos para-choques de caminhões, que funcionam quase como intertítulos do momento sentimental do filme.
Gosto da relação de cumplicidade mais óbvia – de João com o menino Duda –, mas também da menos óbvia – o reaparecimento de Rosa (Dira Paes) na vida do caminhoneiro, um acontecimento terapêutico para o personagem e uma injeção de energia num filme que, dali em diante, poderia se tornar um marasmo. Assim como da cumplicidade de João com o suposto vilão, o verdadeiro pai de Duda.
Numa das entrevistas, João Miguel chamou À Beira do Caminho de “filme de estrada”. Eu o chamaria de “filme de amor”. Melhor: “filme de empoderamento”, pois se trata da passagem de um personagem que observa distante sua própria vida, como um coadjuvante, para um personagem protagonista de si próprio.
também assisti ao filme num sábado à tarde, num cinema de shopping no DF. havia eu, minha mulher e mais 3 casais. ainda muito pouco, melancólico mesmo. compartilho da sua opinião.o público brasileiro é mesmo covarde e só quer dar chances às comédias oriundas de sitcom televisivos, escondendo-se em argumentos injustificáveis.
parabéns pelo texto!