Imagino que vocês já saibam, mas vale reforçar: estreou na quinta o filme que é o mais relevante do ano até o momento. Cães Errantes, alegadamente o último filme de Tsai Ming-Liang (O Sabor da Melancia, O Rio, Vive l’Amour).
Se esta for, de fato, a última contribuição que Tsai dará ao cinema como realizador, ao menos ela encerra com algum sentido os temas e a estética que ele tem construído desde o finalzinho da década de 1980, mas que passa a ganhar reconhecimento com Os Rebeldes do Deus Neon.
Tem-se em Cães Errantes a retomada do tipo mais comum de personagens na sua cinematografia – aqueles que não enxergamos no nosso cotidiano e que carregam uma desesperadora ausência de rumo – filmado com a sensibilidade típica de Tsai em captar o vazio, mas elevando isso próximo à exaustão.
Não à toa, as reações de público e de crítica ao comentar o gostei-não gostei esbarram no tal plano final, que dura bastante tempo, mais até que as convenções do cinema de arte cristalizado sugerem. Não há muito o que fazer quanto a percepção temporal que teremos ao assistir o filme: depende da disposição do espectador, do dia, se dormiu bem, se está disposto a esse tipo de experiência etc. Quando assisti ao filme na Mostra do ano passado saí extasiado com o filme e com o tal plano final. Dei cotação máxima e, meses depois de assistido, ainda sinto a mesma coisa com o filme. Mas pode ser que agora na revisão ele caia ou que o encantamento da primeira sessão desapareça.
O que guardei na memória é que Cães Errantes vai bastante além de um retrato da marginalidade ou da denúncia. Falamos de personagens pertubadoramente invisíveis. Ou como sugeriu meu amigo Pedro numa conversa ontem logo que saiu da sessão, personagens que permanecem invisíveis apesar de percebidos.
No caso do pai, percebidos porque seguram as tais placas que anunciam imóveis de luxo à venda. Mas ainda assim que continuam invisíveis. Como se apesar de percebê-los, os que os observam decidem mantê-los invisíveis. Ou seja, um nível a mais de perversidade e que torna praticamente inviável a leitura unicamente sociológica – por isso minha recusa ao termo “marginais”, já que estar à margem acessa uma gama de sentidos os quais Cães Errantes atravessa, mas não estaciona neles.
Também me interessa no filme os mecanismos que os filhos criam para dar algum sentido de poesia numa vida que pouco lhes oferece (transformar um repolho num objeto para brincadeira entre os irmãos é um dos exemplos disso). Está aí um tema que jamais se esgotará, já que viver em sociedade implica conflitos, disputa: como é possível construir um espaço de encantamento mesmo quando estamos sob condições aquém das mínimas para tal? Cães Errantes é também sobre isso.
Sou fã do cinema de Tsai, ainda que me divida entre a admiração e a distância em relação aos filmes que se apropriam do musical (O Buraco e O Sabor da Melancia) e prefira seus filmes mais diretos. Uma razão a mais para me afeiçoar a Cães Errantes, bastante próximo a um Tsai do começo da carreira, só que elevando a percepção temporal ao máximo.
Atualização: revi o filme ontem na tela do CineSesc e ele continua tão bom quanto da primeira vez. Cotação máxima. Recomendo a leitura da crítica do Sérgio para a Interlúdio [clique aqui e leia].