Sequer pensei que um dia fosse usar a expressão “blackface” para uma atriz negra. Mas aconteceu: Zoe Saldana em Nina. Que triste. Muito triste. Para todos os lados. A começar pela recusa em encarar que tal gesto representa uma violência aguda e que aponta para algo maior, grave e sub-reptício.
O cerne da discussão não está se Zoe é ou não boa atriz, se sua atuação é boa ou não. Ou se ela é negra ou não. O ponto nevrálgico: escolher uma atriz com a fenotipia de Zoe para interpretar alguém com a fenotipia de Nina é dizer para as mulheres negras de pele escura que “esqueçam, queridas, vocês não são bonitas o suficiente, nem qualificadas o suficiente, para ocupar um lugar no qual as pessoas admiram seu trabalho e felicitam sua existência no mundo – você só serve para a escuridão”. É legitimar uma organização colorista de mundo, em que apenas negros mestiços de traços “leves” e “delicados” é que podem ocupar e circular por espaços nobres como o cinema.
O mundo da imagem e da representação já é organizado assim. Puxemos pela memória rapidamente quantas mulheres negras de pele escura estão presentes nas representações imagéticas do nosso cotidiano? No caso brasileiro, até mesmo em propagandas “preto-amigáveis” (geralmente as de instituições públicas ou de empreendedorismo), a fenotipia privilegiada não é a daquelas que tem um “negro nose with Jackson Five nostrils”.
Pensei no termo “autoestima” como o principal atingido pelo colorismo que “elogia” por meio do “mas você é moreninha!”. É a autoestima também, mas mais: é a sanidade, é a saúde de não entrar em depressão por olhar ao redor e não ver a possibilidade de existir sem a exotização ou invisibilização. É um pouco do conceito da neurose na negritude que Frantz Fanon trabalha em Peles Negras, Máscaras Brancas: como não desenvolvê-la se os inputs do mundo vem na direção de quanto menos negro, mais pode ser aceito?
É preciso dizer: a escolha por Zoe é um gesto de violência.
“Ah, mas foi uma escolha puramente econômica, sabe como é, precisamos de uma front runner que possa fazer as pessoas comprar ingresso etc”. Pois bem, como se o capitalismo fosse uma estrutura inocente, que só toma decisões técnicas, eficientes. Lembremos, apenas, que o “tecnicismo” das escolhas capitalistas foi um dos esteios do processo que escravizou negros tanto aqui quanto nos Estados Unidos, país de Nina.