O aspecto que sempre me chama mais atenção no Afrofuturismo, especialmente em suas manifestações cinematográficas, é a construção de um devir de mundo em que o negro não mais será o “Outro”, aquele que não se é, aquele do outro lado do cercadinho, mas sim sujeito, dos pés à cabeça. O mundo, por consequência, não traria mais o homem branco como o ser universal por excelência, o porta-bandeira de todos os valores da humanidade – explorei essa questão tanto no artigo que escrevi para a Interlúdio, o último antes de deixar a redação da revista, que pode ser lido aqui neste link, quanto na palestra que ministrei na Unicamp em maio.
Por que o interesse no devir? Porque do jeito que está, não dá. Porque do jeito que está, não se é. Delirar um futuro, imaginá-lo e dar a ele cores e formas é o lenitivo justamente para quem não tem no presente razões palpáveis para projetar um futuro. Então inventa-se um – não seria justamente esse o fascínio que Space is the Place (1972) exerce?
Saio do devir afrofuturista para chegar ao devir gay-trans-negro-latino e como ele está lá, escancarado, em Paris is Burning, o documentário que Jennie Livingston lançou em 1990 e que, com o passar dos anos, passou a ocupar aquele lugar especial dos filmes que se tornaram o retrato-síntese de um tempo, dum local ou grupo. Penso que Paris is Burning está para a subcultura LGBTQ nova-iorquina oitentista como Hoop Dreams está para o basquete – ambos são registros indispensáveis e incontornáveis aos interessados em adentrar nos respectivos universos.
Mas para além dessa “função”, Jennie realizou um documentário onírico sobre um devir: os balls (bailes/desfiles) em Harlem, nos quais os gays afeminados (os mais penalizados pela cultura “ativo, discreto e fora do meio”), travestis e transexuais imaginaram e erigiram um mundo paralelo em que eram o centro do universo, uma constelação na qual os fatores que os levavam à exclusão no mundo real eram, ali, sobre aquele chão de madeira batida, os mesmos que os tornavam rainhas.
Entre a dezena de capítulos que compõe o documentário destaco o da montagem de cada personagem para o desfile. É a fala de Dorian Corey que traz à luz o que estava escondido: “Na vida real você não vai conseguir um trabalho como executivo a menos que tenha formação acadêmica e oportunidade. Bem, o fato de que hoje você não é um executivo é por causa da sua posição social. Quanto a isso não há dúvidas, os negros enfrentam obstáculos pra chegar a qualquer lugar – e aqueles que alcançam geralmente são hétero. Num salão de baile você pode ser o que quiser, você não é um executivo de verdade, mas se parece com um e, com isso, você mostra pro mundo heteronormativo que sim, posso ser um executivo. Se eu tivesse a oportunidade eu poderia ser um executivo: e isso traz preenchimento, satisfação”.
Claro que tal afirmação traz uma limitação incontornável, para o qual não se está cego: todos, em algum grau, almejam performar uma ideia de normalidade, de ser tão americanos quanto os americanos (“americano” como sinônimo de homem branco, heterossexual e cisgênero, diga-se). O mesmo senão que se poder para filmes como Hoje eu quero voltar sozinho ou Advinha quem vem para jantar, que parecem trazer um invisível neon gritando “OLHA PRA MIM, EU SOU NORMAL TÁ?!”.
Mas que também não se esteja cego à ação contida no gesto dos personagens de Paris is Burning, que passa longe do tom de moderação dos outros filmes citados: ser o que se quiser ser para aqueles que historicamente sequer tem o direito a desejar. Naquele baile, corpos negros e latinos mergulhados na pobreza, mas performando papeis que a sociedade simplesmente fez questão de dizer que não são para eles, são incompletos politicamente, mas nada levianos ou inocentes.
Na pista, Paris queima sim.