Por ter feito parte do júri do Prêmio Revelação – júri esse que premiou Sesmaria, de Gabriela Richter Lamas – vi menos sessões que o de costume no Festival de Curtas deste ano. Ainda assim, os programas da Mostra Brasil, Feminino Plural e Verbo e Corpo que consegui acompanhar constituem uma razoável amostragem do tom geral.
Falando em tom geral, fiquei com a percepção de que neste ano – tanto pelos filmes inscritos quanto pela sensibilidade da seleção e programação – tivemos mais filmes que realmente importam. Não apenas filmes de tema, mas também filmes que refletem outros pontos de vista sobre estar no mundo. Que observam, apreendem e reelaboram esse mesmo mundo a partir de outros marcadores, de outras experiências históricas – ou ainda achamos que o olhar é a-histórico e acreditamos na falácia do ponto de vista universal?
Vi uma presença marcante de curtas dirigidos por mulheres. Vi também personagens mulheres em filmes que me causaram a boa sensação de “é isso, eu tenho de estar aqui neste momento vendo esse filme”. Vi também a presença de personagens negros, de histórias desconhecidas ou pouco ouvidas, mas ainda poucos diretores negros – é preciso mais, muito mais, sempre.
Mas, de forma geral, curti demais ver outros sujeitos históricos no cinema. Na boa? Quero é mais!
Às cotações e meus preferidos do festival deste ano:
Eclipse Solar, de Rodrigo de Oliveira – 4,5
Consigo nem falar direito sobre esse filme. Fiquei tão encantado e emocionado que o que sairia agora seria apenas uma coleção de breguices. Mas queria que ele ficasse passando em looping naquela exibição da Cinemateca.
Rapsódia para o Homem Negro, de Gabriel Martins – 4
Sei lá eu quantas vezes eu já revi esse curta. A cada visão, mais respeito, mais carinho, mais certeza de que até mesmo nos erros esse filme acerta. Em cada pequeno detalhe. Ainda vou parar e de fato escrever sobre Rapsódia porque é preciso.
Sesmaria, de Gabriela Richter Lamas – 4
Revisto no Festival de Curtas ficou ainda maior. Muito maior. As transições do documentário observacional pitoresco de cidadezinha-olha-que-fofo/bizarro-aqueles-velhinhos para uma ficção de horror e morte são muito precisas. Decupagem primorosa (os planos preparatórios para o grande plano da cozinha). Quando a velha vai falar com o velho (levar chá ou café, acho) e o plano está repartido ao meio eu penso: putz, fudeu, adeus.
Estado Itinerante, de Ana Carolina Soares – 4
Rapaz, aquela cena das amigas reunidas no bar e as motos passando… eita! Ou a do portão, quando ela vai pegar as coisas…
Quando os dias eram eternos, de Marcus Vinicius Vasconcelos – 4
Fico um pouco desconfortável de falar algo sobre cinema de animação porque não tenho lá o maior acúmulo do mundo, mas esse curta bateu fundo. Das inversões temporais que traz, de como o desenho e a animação só intensificam a dor que trazem os personagens.
Galeria Presidente, de Amanda Gutiérrez Gomes – 3,5
Aquele plano do homem que dança pra câmera poderia dar tão errado! (mais um negro africano fetichizado, pois africano é tudo feliz, só dança etc). Mas dentro do contexto do curta – com muitas nuances entre personagens, respeito a subjetividades, a trajetórias individuais dentro do chapéu Negro-Africano-Imigrante – ele se torna tão carinhoso quanto o dos homens que dançam pra câmera em Na sua companhia. Destaca-se também a força da noção de cinema, de onde a câmera deve estar, em quase todas o filme.
Lembranças de Mayo, de Flávio C. Von Sperling – 3,5
Na revisão passei da simpatia ao gosto. Existem as contradições de quando se vai homenagear o cinema da Boca (não dá pra fingir que muitos filmes ali feitos exalam machismo), mas há também o prazer de ver a personagem escapando daquele bando de homem boçal (o marido que berra “Gildaaaa”, o garotão que se acha o máximo e o pai trouxa que age como um neném).
Quem matou Eloá?, de Lívia Perez – 3,5
Bemmmmm melhor que Lampião da Esquina, filme anterior da diretora. Este foi talvez o curta que mais discuti nas rodas de conversa, tanto pela força quanto pelas escolhas de encenação. Para mim foi muito rico justamente ser relembrado que a universalidade do olhar é um grande blá-blá-blá. É um dos que me deixou curioso: o que a crítica faria com esse filme?
História de uma pena, de Leonardo Mouramateus – 3
Pra colocar ao lado de Mauro em Caiena e A festa e os cães como os filmes dirigidos por Mouramateus que eu realmente gosto. Há o trágico da sala de aula (professor encena ensinar, alunos encenam aprender) e o mundo cheio de cores (e namorados doidões) lá fora. Esse dentro e fora me interessou.
FotogrÁfrica, de Tila Chitunda – 3
Tão raro ver tantos pretos em fotografias que nos levam ao passado de uma família, sendo possível apontar o lugar, a data, o nascimento. Raro isso. Dentro desse registro que já virou quase subgênero – documentário em primeira pessoa – um dos que mais vale assistir (ainda que por muitas vezes aponte pra uma estrutura mais de longa que de curta).
Filmes que não entram no meu top 10, mas que gostei de ver por uma razão ou outra
Antonieta, de Flavia Person – 3
CARALHO QUE HISTÓRIA!
Impeachment, de Diego de Jesus – 3
Esse já nasce um clássico da internet. Forte na primeira visão, engraçado e trágido demais. Resta rever e sentir sem o efeito catártico da surpresa
Aquela Rua tão Triumpho, de Gabriel Carneiro – 3
Não é segredo de que me interesso demais por outras historiografias do cinema brasileiro. E acho esse curta uma bonita homenagem – especialmente aquele plano da rua, em que o velho anda e as lembranças batem à porta
Eu só queria que você dissesse, de Vanessa Silva – 3
Quando vem aquela reunião do Centro Acadêmico eu penso: eita. Mas aí surge um filme de quem trabalha muito bem os tipos que ocupam um certo espaço. Gostei muito de duas coisas: a atriz negra que faz a melhor amiga (quero vê-la em outro filme interpretando um personagem de verdade) e o diálogo “pô, será que você é frígida?”.
Preto, de Elton de Almeida – 3
Bem curioso pra seguir os rumos desse diretor. A cada filme sinto um passo à frente. Em Preto sinto que há muito a ser aparado, mas também muita coisa bacana (“ela é mais bonita… não sei por quê”).
Crônicas do meu silêncio, de Beatriz Pessoa – 3
Gostei muito do roteiro e da proposta de direção (os planos sequências que reforçam a percepção de que a violência contra a mulher não é algo ocasional, mas sistêmico). Penso, todavia, que poderia haver ainda mais capricho e apuro justamente na mise en scène.
Filmes que tinha me programado pra assistir, mas não consegui
A Vez de matar e a vez de morrer, Dois pássaros, Enquadro, Iluminadas, O delírio é a redenção dos aflitos, Toré