O cinema de João Pedro Rodrigues sempre foi para mim um cinema de apreciação cinéfila – ou seja, sempre à posteriori, assistir aos filmes depois de sua existência formal (festivais, exibição em salas de cinema). Cinema de DVD ou de torrent. Foi assim com Morrer como um homem, primeiro de seus trabalhos que vi, que me chegou muito próximo do momento em que estava no auge da paixão pelos filmes de Jacques Nolot, outro cineasta que tem como matéria elementos da vivência gay masculina.
Rodrigues, contudo, não tem aquele tom deprimente que Nolot herdou de Fassbinder (ou aquilo que o crítico Robin Wood ironiza, no artigo “Responsabilidades de um crítico gay de cinema”, como sendo a suposta “verdade sobre o meio homossexual”). “Solar” não é necessariamente um adjetivo a qualificar a resolução dos conflitos dos personagens em Rodrigues. Mas há neles algo de promessa de vida futura. Quando Sérgio faz sua metamorfose para Fantasma em O Fantasma e Fernando para Antônio em O Ornitólogo, eles vivem: plano de caminhada rumo a alguma coisa indefinida.
Rever O Fantasma, primeiro longa de ficção de Rodrigues, é se alimentar vividamente de um tipo de cinema que modula símbolos, representações e mitologias aparentemente opostas, irreconciliáveis, mas que ocupam o mesmo lugar simultaneamente, de forma muito natural. O Fantasma combina fetiche do látex, do policial e elementos de BDSM, obsessão amorosa, um protagonista gari (quantos já vimos no cinema?), Kafka e histórias em quadrinhos; O Ornitólogo convida a uma observação voyeurista da ereção massiva de Paul Hamy sob a cuequinha branca, ao mesmo tempo que o enquadra como um corpo santificado, que remete a imagens do cristianismo, retratando-o também como um corpo que poderia muito bem ter sido retirado de uma pintura de Caravaggio. Realmente um barato.
Rodrigues não é o único a trabalhar com fetichismo. Toda a obra documental de Jan Soldat (Sistema Prisional 4614, O Incompleto) dá bastante atenção a isso, com espantosa frontalidade. Rodrigues, contudo, trabalha com a ideia do culto a algo numa abordagem horizontal que alcança todo o espaço que chamamos de vida. Os filmes de Rodrigues constroem um espaço de imaginação que combina elementos dispersos, sendo O Fantasma e O Ornitólogo os mais evidentes neste sentido
A jornada de metamorfose é outro elemento comum ao primeiro longa de ficção de Rodrigues e o último. Em O Ornitólogo, Fernando começa como um observador de aves, encontra (e transa) com um Jesus e se torna um errante casadinho; O Fantasma inicialmente se apresenta como um filme típico de cruising para se consolidar como um conto da metamorfose animal-canina de Sérgio, que vai de catador a consumidor de lixo. Isso combinado com as referências: o látex da cultura gay BDSM, mas que é também o da fantasia da Mulher Gato; o título de fantasma, que descreve seu status no mundo e também do boy por quem se apaixona, mas que me faz recordar do HQ criado por Lee Falk: a caverna de caveira do herói dos quadrinhos é o quartinho bagunçado de Sérgio.
Rodrigues é, pois, um assaltante de simbologias. Assistir a O Fantasma agora, um pouco mais maduro, é, de fato, redescobrir um filme que evidentemente não vi corretamente da primeira vez. Torna-se evidente a sensação de que muita coisa deve ter passado despercebida também nas visões de Odete e Morrer como um Homem. Assistir a O Ornitólogo no Janela e revê-lo na abertura do Panorama me fez reabrir o baú onde guardava os filmes de Rodrigues, caminhando para uma reaproximação afetuosa do “já visto, jamais visto” – para citar o filme do Tonacci que trabalha com a redescoberta de imagens íntimas.