Há pouco mais de duas semanas fui convidado para participar de duas formas da 20ª Mostra de Tiradentes: tanto para compor o júri – que premiou, na Mostra Aurora, o longa Baronesa e, na Mostra Foco, o curta Vando Vulgo Vedita – quanto para participar do debate sobre o eixo da mostra deste ano, “Cinema em reação, cinema em reinvenção: questões de representatividade e de proposta estética”. Justamente por estar atrelado às obrigações de júri decidi não publicar de imediato o texto que serviu de base para a minha fala em Tiradentes. Passadas essas semanas retorno ao assunto porque ele não se esgota na mostra mineira. Pelo contrário, trata-se de uma reflexão que, penso, deve ser feita pelo chamado “circuito de festivais” e, sendo mais específico ainda, pelo “campo do cinema”.
Tenho a sensação de que em conversas e debates toda vez que vem à tona algum tipo de demanda política ou quando está em questão que lugares o cinema pode ocupar enquanto expressão crítica nós nos concentramos na preocupação da oposição Cinema X Política e, enquanto guardiões da forma, nós – críticos, curadores, pesquisadores – de certa maneira seríamos a trincheira última pra não se perder atenção à forma, pra que a forma fílmica não seja diminuída em prol de qualquer outra demanda.
Dessa maneira, nada mais lógico que nós, de um pretenso lugar universal de percepção, interpretação e leitura cobraríamos que o filme aliasse o que entendemos como político na estética e nas suas afirmações, em suma, na sua forma e no seu conteúdo. Assim, usamos certas categorias pra dar conta dos filmes que conseguem essa aliança – os chamados “filmes potentes” – e os que falham – aqueles cujo mérito seria unicamente levantar uma discussão ou apontar uma urgência. E como sabemos, no caso do cinema brasileiro e do circuito de festivais – sejam os hegemônicos ou os contra-hegemônicos – predomina uma certa percepção universalista política de esquerda.
Em suma, celebramos e damos atenção aos que atingem a esse ideal, lamentamos ou ignoramos os que não atingem esse patamar. Esse me parece um lugar com alguma justeza, relevância e evidentemente tem lastro na história das formas – no caso da cinema, a mise en scène seria, grosso modo, a verificação final, a prova cabal de um acerto ou de um erro num filme. Sendo eu uma pessoa com olhar cinematográfico formado dentro dos paradigmas da crítica, esse pensamento pautou diretamente a minha maneira de me relacionar com os filmes: partindo dessa não enunciada percepção universalista.
Contudo, de alguns anos para cá – dois anos e meio, três… – na minha práxis tenho cada vez mais me sentido desconfortável com essas chaves já previstas de reações a filmes, e ficado mais e mais incomodado com quais filmes elegemos para falar (e para assistir) e aqueles que invibilizamos. Enfezado com o discurso universalista que não se enuncia enquanto tal e com esse lugar confortável de reconhecer a existência de desigualdades no cinema (seja na produção de filmes, na circulação de filmes ou na reflexão acerca de filmes), mas pouco fazer para, de fato, pra alterar esse quadro.
Olho essa questão a partir do meu lugar de homem gay e negro que trabalha como crítico, o que, evidentemente, é um lugar para lá de minoritário no panorama de circulação de ideias, especialmente no Brasil – e isso sim, é um problema, e já passou da hora de desnaturalizar essa subrrepresentação. Percebo que conforme surge o desconforto surge também um desejo de ver outros filmes, de me encontrar nos filmes ou encontrar outros “eus”, outros sujeitos nos filmes que assisto e nos filmes sobre os quais escrevo, descobrir outros sujeitos atrás das câmeras. De levantar outras questões, de experienciar por meio de outras portas e atravessar os filmes por outras questões. Fui encontrando aos trancos e barrancos uma série de filmes merecedores desse lugar digno de “escrever sobre”. E também fui percebendo que pouca gente ouviu falar desses filmes, menos gente ainda escreveu sobre eles e uns gatos pingados acham esses filmes imprescindíveis, inevitáveis de se passar para se pensar o cinema.
Surgem, então, dúvidas, e são algumas dessas dúvidas que gostaria de dividir com vocês para, quiçá, tentar avançar na questão da nossa mesa. Uma dúvida primeira: só eu vejo valor nesses filmes? Por quê? Não reivindico um lugar nem de gênio louco que percebe o imperceptível, nem de Messias que vai guiar os escolhidos rumo à terrinha dos filmes “certos”. Seria apenas pura idissioncrasia, ou fetiche pelo obscuro, enxergar valor nesses filmes – falarei sobre alguns deles no final da minha exposição – ou não estaria isso atrelado ao fato de que eu observo filmes a partir de um outro lugar, lugar esse, repito, de minoria dentro da crítica, digamos, contra-hegemônica?
Prolongamento dessa dúvida: a ênfase da nossa questão sobre representatividade, sobre como lidar com essas sensibilidades latejantes que estão chegando ao cinema, deve ser só nos filmes – perguntar aos filmes, atestar méritos ou deméritos, acertos ou falhas – ou também passa inevitavelmente pensar de qual lugar observamos filmes, lidamos com filmes – em suma, pensamos sobre cinema? Não passa também por pensarmos os nossos lugares históricos, de classe, de raça, de gênero, de sexualidade? Não passaria por reconhecer que temos pontos estruturalmente cegos que não nos permite nos reconhecermos na sensibilidade do outro? [1]
Essa é uma dúvida central que tenho.
Outra dúvida: enquanto pessoas que veem filmes e pensam filmes, ao entrarmos em contato com filmes que, segundo a nossa percepção, não atendem aos critérios de qualidade da forma, devemos apenas lamentar que esses filmes não atingiram esse paradigma formal e ignorá-los? Não existe uma outra práxis que ultrapasse o conforto da melancolia ou do “foda que isso não é um filme”?
Não tenho respostas muito claras, definitivas ou um programa explícito que diga “ah, mas o que devemos fazer é isso aqui, aquilo outro”. Tenho dúvidas e uma tremenda desconfiança que essa lamentação ou o “isso não é um filme” já não é mais suficiente. E também desconfio da percepção universalista que define o que é cinema – assim como desconfio seriamente dessa mesma percepção universalista que define o que é história, o que é civilização e o que é barbárie.
Tenho tentado investigar algumas pistas que poderiam oferecer possíveis respostas. Elas passam por alguns lugares que me parecem inevitáveis:
- o fomento efetivo à chegada de outros seres históricos, outros corpos, outras cores, outros gêneros escrevendo sobre filmes, curando filmes, debatendo filmes. Estando atento, obviamente, aos riscos do essencialismo [2], minhas últimas experiências (especialmente ministrando oficinas de crítica) só reforçam a sensação de que conviver com outros seres históricos conscientes dos lugares que ocupam nas relações em sociedade, em especial negros e mulheres, é imprescindível pra que coisas outras nos filmes sejam vistas e apontadas, maneiras outras de se reconhecer num filme sejam estabelecidas.
- Um autoquestionamento contínuo, um estado de colocar-se em dúvida, sobre os nossos pontos cegos ao lidarmos com filmes em que o “outro” da tela (e por detrás da câmera) não seja “nós”.
- Uma ida, especialmente enquanto crítico, a esses filmes considerados aquém do cinema ou unicamente panfleto ou militante. Escrever sobre esses filmes inclusive como um gesto necessário de formação de olhar – nosso, de quem escreve, e daqueles que fizeram o filme, colocando essas sensibilidades para conversar.
- Rever drasticamente quais são os filmes que fazem parte do nosso cardápio de observação e desnaturalizar o fato de que, mesmo no nosso dia a dia de cinefilia, ainda vemos poucos filmes dirigidos, por exemplo, por mulheres ou por negros.
Para encerrar, como ficou evidente até agora eu tentei fazer um deslocamento, colocar a questão não só nos filmes, mas também em nós, aqueles que olhamos filmes. Falei dos pontos cegos, de como a nossa incapacidade de se reconhecer no “outro” afeta percepções [3]. Penso num filme brasileiro recente que ilustra a necessidade de deslocar a ênfase e esse filme é o Kbela, da Yasmin Thainá.
Para quem não viu, Kbela é um curta que organiza em blocos a experiência de várias mulheres negras que passam a se reconhecer como tais. O cabelo é o componente central que une essas experiências. Pois bem, a praticamente inexistente circulação de Kbela pelos festivais coloca uma questão séria: o problema é o filme ou somos nós? O problema é a ausência de cinema no filme ou a falta de reconhecimento na nossa sensibilidade, de se relacionar com os “eus” presente naquele filme reconhecendo quem eles são? Kbela mal passou nos festivais de cinema – lembro-me de apenas vê-lo na mostra competitiva da 16ª Goiânia Mostra Curtas –, fazendo sua vida ou exibições especiais organizadas por militantes ou em retrospectivas lá fora, em festivais internacionais (como é o caso agora do Black Rebels em Roterdã). De novo, para mim um filme que transpira cinema, mas ausente de quase todos os festivais de cinema. Problema do filme ou o problema somos nós?
Kbela tornou-se um filme invisibilizado desse circuito prestigioso. Isso não deveria ter acontecido.
Para encerrar mesmo: no começo da minha fala comentei acerca de filmes que descobri a trancos e barrancos. Filmes muitas invisibilizados, mas que reagem ou reagiram a seus tempos, que já ofereceram há muito respostas para essas questões que estamos observando mais contemporaneamente. E como sou um crítico negro de cinema – um dos poucos, infelizmente, registre-se, e esse cenário precisa ser alterado urgentemente – aponto alguns filmes de estatura imensa, que já responderam mais que satisfatoriamente às questões de representatividade, mas que pouco faz parte do nosso repertório e raramente aparecem com aquele peso de obrigatoriedade e inevitabilidade em cursos de cinema, por exemplo:
Touki Bouki – A Viagem da Hiena (de Djibril Diop Mambéty); Sweet Sweetback’s Baadasssss Song (de Melvin Van Peebles), Ganja and Hess (de Bill Gunn), Space is the Place (com o Sun Ra), os curtas em Super-8 de Barbara Hammer, Alma no Olho (de Zózimo Bulbul), toda a obra do Idrissa Ouedraogo, Tongues Untied (Marlon Riggs), Nascida em Chamas (da Lizzie Borden), The Watermelon Woman (da Cheryl Dunye), Afronauts (da Frances Bodomo). São exemplos rápidos, extraídos de primeira – ontem à noite enquanto eu estava terminando de organizar esta fala – de filmes que são centrais para a maneira que penso cinema, filmes sobre os quais quero falar, filmes que trabalho em sala de aula e que sempre dou um jeito de avisar as pessoas de suas existências.
Filmes, novamente, de estatura gigantesca. Mas pouco vistos, pouco falados e que não atingiram status de obrigatórios como um Godard sessentista ou até mesmo um Tsai Ming Liang dos anos 2000. Problema exclusivamente dos filmes ou problema também nosso?
[1] Amaranta Cesar, “Conviver com as imagens: curadoria, reconhecimento e sinais de vida” (lecture), V Colóquio Cinema Estética e Política – UFMG. Belo Horizonte, Minas Gerais. Novembro de 2016.
[2] Em “Essencialismo e experiência”, sexto capítulo de “Ensinando a Transgredir – A educação como prática de liberdade”, bell hooks avança na questão do essencialismo, apontando que as acusações rotineiras de que os grupos marginais se agarrariam numa justificativa essencialista que os autorizaria a versar sobre algo são, na verdade, uma cortina de fumaça que não permitiria ver como os grupos hegemônicos se utilizam, eles sim, de uma fala essencialista para justificar o próprio ato de… falar!
[3] Um exemplo de como um filme pode ser experenciado justamente nas zonas invisíveis para a maioria está na crítica de Karine da Verberanas sobre Mate-me por favor: “E, assistindo àquele filme, uma onda de adrenalina tomava o meu corpo porque eu sabia que aquela mise-en-scène não denotava falta de complexidade. Não denotava ausência de subjetividade. Não denotava um olhar apolítico e fetichista sobre garotas burguesas. Mas eu sabia também que o filme seria lido por muitos dessa forma por causa do ponto cego que existe no olhar que legitima os filmes.”. Disponível em https://verberenas.com/2016/09/19/mate-me-por-favor/
A propósito:
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Heitor, Estou descodificada com suas palavras… Percebo a mesma inquietação que me fez reagir a uma fala em algum momento em espaço de festival sobre essa “falência” do cinema. Provocar no espaço critico o questionamento de qual cinema estamos mesmo falando é um passo provocador de mudança e com esse poder de questionamento faremos que se multiplique os espaços de falas, e que as falas sejam realmente “diversas” por perspectiva. Só então, avançaremos, romperemos e falaremos do cinema de um outra maneira. abraços. Thamires.
Muito obrigada por isto. Muito obrigada MESMO! Não me considero “crítica” de cinema, mas sim “curiosa” de cinema e sendo mulher, negra, africana é muito ‘solitário’ por vezes ver e reconhecer obras gigantescas que, talvez por não falarem com essa hegemonia anti-hegemonia não tenham a merecida atenção. Por outro lado, é também frustrante ter de lutar, vezes sem conta – é de facto uma luta- , para procurar num filme que eu considero medíocre os motivos que levaram tal filme à fama. Mas todos os pontos aqui levantados são relevantes e pertinentes e eu espero que mais pessoas se questionem sobre o seu espaço de “verdade” e/ou realidade e sobre o seu papel enquanto críticos. Mais uma vez agradeço.