Tirada por Layla Braz, a foto que ilustra esse post é do último dia do seminário. Gosto do encontro de gerações que ela traz.
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[Clique aqui e acesse o catálogo completo do 20º Festival de Curtas de Belo Horizonte, no qual a mostra Cinema Negro: Capítulos de uma História Fragmentada esteve abrigada]
Cada processo curatorial tem suas particularidades, acertos, equívocos e muitas descobertas. Expectativas se confirmam ou não, receios se materializam ou não. Até este momento felizmente vivi bons processos de curadoria, comissão de seleção e programação. Mas não há como deixar de reconhecer que este aqui da mostra no Festival de Curtas de BH foi genuinamente especial. Então vou tentar escrever algo que reconheça a força do dia a dia da mostra, mas buscar não cair numa escrita autocentrada, do tipo “curador foda”.
Gestos que potencializam esta curadoria
Não se tratou apenas de exibir filmes. Houve o seminário, que permitiu construir uma espécie de cartografia crítica da presença negra no cinema brasileiro. Houve a prosa após cada uma das cinco sessões. Houve o catálogo, documento para o futuro mesmo, material de pesquisa. Houve o debate de quinta, em que possíveis amanhãs foram apontados em distintas artes. Houve o diálogo com as mostras da Safi Faye (a comunicação entre os pilões em Selbé e tantas outras e em Para se contar uma história) e de Akosua Adoma (a expansão dos limites dos “filmes de cabelo”). Houve, quase que por acidente (ou espírito do tempo?), um diálogo firme até mesmo com o filme vencedor da competição brasileira, NoirBLUE.
Por isso me deixa muito feliz que a mostra tenha acontecido dentro do Festival de Curtas de Belo Horizonte, evento que se adotou uma postura respeitosa com o meu trabalho e minhas escolhas. Minha percepção é de que a mostra não foi um puxadinho, uma edícula dentro da costura geral, mas sim central pra colcha da edição deste ano.
Lidar com os filmes que fizemos
Gente preta vem dirigindo filmes ao menos desde 1948. As muitas conversas informais e formais ao longo de dez dias apontam o quão desafiante é ter de lidar com os filmes que fizemos, não com os que gostaríamos de ter feito. Aceitar limites, contradições e posturas excludentes reforçadas. Lidar com avanços daqui, retrocessos dali. Entender o que é essa coisa da condição histórica que permitiu a esse ou aquele realizador(a) fazer o filme que foi possível fazer. Acho isso bom: aceitar que fizemos esses filmes – com suas potências e deslizes – é parte de um processo rumo a feitura não só de filmes melhores, mas da possibilidade de vida livre no cinema.
Público e presença
Aconteceram umas coisas muito doidas em torno da ocupação da sala principal do Cine Humberto Mauro desde o dia 10. Tão doidas que, se contadas no meio virtual, soariam como fanfics da esquerda miçangueira. O que pode ser dito sem medo de demagogia é: puta que pariu, que fita loka é ver aquele bando de preto fazendo com que o cinema tivesse ocupação máxima (ou próximo de sua capacidade total) em todos os dias. A(s) gente(s) nas filas. Enquanto o Brasil mantiver sua estrutura racista, jamais será coisa pouca reconhecer o prazer pela presença dos corpos negros. Escrevo quase sempre dentro de uma bolha, então quiçá este texto não chegará ao público que pertence ao mundo real, no corre do cotidiano. Mesmo assim, se alguém aí do mundo real ler este texto e tiver chegado até esse ponto aqui, queria agradecer por terem ficado até o final das sessões e, muitas vezes, pro debate. Eu vi vocês e me vi em vocês. Montei os programas pensando também em vocês.
Descobertas
Realmente poderia passar horas falando de como foi MUITO MARAVILHOSO redescobrir os filmes por conta da organização dos programas. Não vou fingir modéstia: cada programa foi, sim, pensado exaustivamente – a parede do escritório lá em casa com os post it em cima da cartolina servem de registro. Também foi muito pensada a ordem dos filmes dentro de cada sessão, bem como a ordem em que cada programa seria exibido – Ana Siqueira, valeu por ter atentado pra não deixar Genocídio ficar, acidentalmente, por último, pois isso seria desastroso pra construção da narrativa.
Ou seja, meu trabalho quis, sim, causar sensações, criar intertextualidades, potencializar filmes ou colocá-los de forma a ressaltar os eixos temáticos. Contudo, como descobri coisas no durante das sessões! Nem todas as descobertas devem ser compartilhadas – são minhas, guarda-las-ei comigo, dizem respeito ao meu processo profissional. Mas divido uma: antes do programa de terça (Genocídio), já havia assistido a Numero e Série duas vezes. Mas jamais percebera algo óbvio: que o primeiro plano – inspetor manipulando um portão gradeado – estabelecia logo de partida uma atmosfera de prisão, não de escola. Talvez a evidência disso só tenha saltado à minha frente por conta do todo do programa – um punhado de filmes que exploram a iminência do fim da vida e da liberdade.
Outra (re)descoberta: curar e programar é um ofício muito do gostoso, mas também profundamente sério. Vai tão além, mas tão além de “juntar filmes do meu gosto”. É imperioso que os “condenados da terra” ocupem esses espaços e que tenham em seus horizontes esse ofício. Quero mais oficinas e vivências que contribuam nas formações das pessoas.
Falhas e insuficiências
Penso que não cabe a mim concentrar a voz até mesmo na hora de apontá-las, senão a conversa sai de mim e termina em mim mesmo. Obviamente isso não significa uma ausência de reflexão interna sobre o processo e o resultado – tenho olhado pra dentro e também trocado com interlocutores próximos.
Deixo para vocês apontá-las e continuar essa conversa pelas próximas semanas e meses, aprimorando ou apresentando outros olhares e formas de construir narrativas em torno do Cinema Negro.
Para aqueles que quiserem continuar essa conversa de forma privada, estou no: [email protected]