por Heitor Augusto
Não invento nada novo quando reafirmo que o faroeste é, de fato, o gênero que define o cinema americano e, mais que isso, forjou uma ideia de “americanidade”. Por isso mesmo me emociona enormemente ver o que Mario Van Peebles fez com Posse.
Mario, filho de Melvin, diretor do icônico Sweet Sweetback’s Baadasssss Song, sobre o qual já falei nesse texto aqui e em muitas das minhas aulas, fez um faroeste negro para contar a história das leis Jim Crow, estrutura sócio-jurídica que permitiu aos estados do Sul frear avanços significativos da população negra e ex-escravizada após o fim da Guerra Civil em 1865.
Quando abordamos o faroeste como narrativa mítica e fabular sobre o que é ser americano, raramente mencionamos um “pequeno” detalhe: como “americanidade” é construída enquanto sinônimo de “ser branco”, mantendo, assim, o negro como o polo oposto e invisível e o indígena como o corpo a ser exterminado. No extracampo da imagem de um John Wayne tem sempre um indígena e um preto. Pensar esses corpos como ausência é algo que a escritora Toni Morrison investigou brilhantemente dentro da literatura no livro Playing in the dark: whiteness and the literary imagination.
Ou seja, o que Mario faz com Posse é se apoderar de uma construção cinematográfica mítica que rouba o gênero para falar de outras coisas e, assim, construir outros mitos. Bela sacada.
Plano-contraplano: Jesse (Mario Van Peebles), o líder dos renegados, olha os dizeres “educação é liberdade”, frase pregada por seu pai, assassinado por supremacistas brancos da Ku Klux Klan.
Não me parece se tratar apenas da substituição de corpos brancos por negros – caminho que deve ser pisado, por exemplo, pela nova agente 007, que será interpretada por Lashana Lynch, uma mulher negra, a menos que haja alguma reviravolta que transforme uma ideia masculina de charme propagada pela franquia numa espécie de black woman cool.
O mito que Posse constrói se comunica muito com a narrativa sobre as lideranças negras do Sul que, no contexto da Reconstrução (1865-1978), lutaram, através da construção de escolas para alfabetização, compra de terras e atuação parlamentar para que a promessa de uma população emancipada realmente se concretizasse. Posse não fala da saga americana, mas sim de uma saga: aquela dos pretos sulistas.