Há uma imensa cratera, um buraco do tamanho da “cova funda” de Corra!, entre as intenções e desejos que estariam contidos na feitura de Vazante e o olhar impresso no filme, o que ele emana. O que está na tela, no quadro, e como lá está. Mirando, pois, o que de fato se tornou matéria fílmica, o diagnóstico é incontornável: Vazante é um filme doente cuja enfermidade é daquelas que, quando em contato com corpos que historicamente tem as chagas abertas, esgarçadas sem nenhum tipo de cuidado, torna-se mortífera.
Primeiro, a questão do rigor. Vazante parece buscar uma sintonia afinada entre tom, dramaturgia e fotografia, entre ritmo, enquadramento e atmosfera sonora. Realiza-se como uma obra que parece carregar os elementos que a tornariam legítimos para ser “filme de arte” – isso sendo tomado como sinônimo de crítico, aprofundado, anti-mercadoria, à esquerda. Contudo, a contradição: esse rigor técnico e formal, a obsessão pela reconstituição visual é muito maior do que o rigor com o humano negro retratado no filme. O rigor em emular temas visuais de Debret não se estende para o rigor e preocupação com a existência de certas imagens em sociedade ou a (falta de) construção de personagens negros (e também brancos). Para Vazante, parece valer mais os diversos tons de preto de uma paisagem poeticamente enquadrada do que a preocupação em não repetir, reiterar remodular formas de violência contra corpos e mentes negras.
Por exemplo, o personagem Jeremias (Fabrício Boliveira), apresentado em tela sem espessura alguma. Por que é retirado do filme de forma tão abrupta, ainda mais por ocupar o lugar de antagonista dos escravizados? A propósito, por que é ele o antagonista que emprega a violência física, enquanto o senhor da casa só o fará no desfecho? Tudo é uma questão de olhar e como ele está impresso na matéria do filme. Que Jeremias existe historicamente e sua presença é indispensável para entender o colorismo no Brasil assume-se. Observa-se, contudo: a quem interessa não desenvolvê-lo? A que interessa apresentá-lo de maneira unidimensional? Para repetir o lugar comum “mas os negros também tem preconceito?”.
Se dramaturgicamente verifica-se a pobreza da construção de Jeremias, racialmente, sua presença ali é irresponsável e, ao lado de outras escolhas do filme, aponta para um olhar adoecido. Um olhar que parece anunciar uma cegueira: aquela que passa por cima sem sequer perceber, pois, afinal, como posso eu passar por cima se eu tenho conhecimento, estudo, ideologia, se estou do lado certo da história? Os erros e violências assinadas por Vazante nos lembram de uma coisa deveras simples: enquanto o autor branco não investigar a fundo seus pontos cegos – e quase nunca isso se dará com paz e amor – continuaremos presenciando e sendo atingidos por pedras que se dizem plumas.
Melancólica contradição de um filme que anuncia como uma de suas intenções desenvolver uma retórica crítica ao processo violento de miscigenação no Brasil, à construção de um paradigma distante de Casa Grande & Senzala. No caminho, contudo, arrasta, como tempestade que leva consigo os barracos das famílias que se amontoam em barrancos, justamente aqueles que diz querer estar ao lado: pessoas negras. Essa é a grande contradição do filme – ou perversão, caso queiramos ser menos educados com um filme que não é nada polido com as nossas vivências pretas. Um filme que se quer uma versão histórica do que se fez no Brasil com corpos negros, ao mesmo tempo que no presente – ou seja, um filme visto em uma sociedade – nega qualquer tipo de agência e autonomia a personagens negros e, pior, a um espectador negro.
Sendo eu um espectador resistente [1], onde caibo em Vazante e onde ele cabe em mim? Tentando responder: o vilão (patriarca) é branco, aquela que dá tilt na máquina patriarcal (a menina transformada violentamente em esposa) é branca; a catarse é do branco; a ação é do branco, a reação também é do branco; o branco mata, o branco enlouquece; a discussão começa no branco e termina no branco. Isso num filme sobre a violência do processo de miscigenação no Brasil e um recorte nas relações escravocratas do Brasil. Qual é o nome disso senão perversidade? Ou se toma como normal que o sujeito-alvo desse filme seja branco?
Da abjeçãoEm junho de 1961, na edição 120 da Cahiers du Cinèma, o crítico e realizador Jacques Rivette estabeleceu um paradigma analítico para observar os gestos formais contidos em obras atravessadas por questões éticas. No caso do artigo estava em jogo Kapò – Uma História do Holocausto (1960), de Gillo Pontecorvo. Rivette começa estabelecendo um ponto de partida que deveria ser inevitável, ao apontar que:
O mínimo que se pode dizer é que é difícil, quando se realiza um filme sobre um tema semelhante (os campos de concentração), não se fazer certas questões prévias; mas tudo se passa como se, por incoerência, tolice ou preguiça, Pontecorvo tivesse negligenciado resolutamente de se interrogar.
Em seguida, Rivette avança em questões do realismo possível para o filme de Pontecorvo, traça uma comparação entre o que traz Noite e Neblina e o que deixa de trazer Kapò para, finalmente, chegar ao trecho que, apesar de citado à exaustão, não se esgota:
Outra coisa: andam citando bastante à torto e a direito, e muitas vezes de forma bastante tola, uma expressão de Moullet: a moral é questão de travellings (ou a versão de Godard: os travellings são uma questão de moral); quis-se ver aí o cúmulo do formalismo, quando antes se poderia criticar o excesso “terrrorista”, para retomar a terminologia paulhaniana. Basta ver, entretanto, em Kapò, o plano em que [a atriz Emmanuelle] Riva se suicida, jogando-se sobre o arame farpado eletrificado; o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para a frente para reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando cuidado para inscrever exatamente a mão levantada num ângulo de seu enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo. Nos incomodam há alguns meses com os falsos problemas da forma e do conteúdo, do realismo e do feérico, do roteiro e da “mizancêne”, do ator livre ou dominado e outras pilhérias; digamos que todos os temas nascem livres e iguais em direito; o que conta, é o tom, ou a inclinação, ou a nuança, como se quiser chamar – ou seja, o ponto de vista de um homem, o autor, mal necessário, e a atitude que toma esse homem em relação àquilo que ele filma, e assim em relação ao mundo e a todas as coisas: o que pode se exprimir pela escolha das situações, a construção da intriga, os diálogos, o trabalho dos atores, ou a pura e simples técnica,“mesmo indiferentemente”.
Corta para Vazante. A câmera que olha, e da maneira que olha, o corpo do africano escravizado (Toumani Kouyaté) que se mata. A câmera que ressalta os olhares de julgamento da negra escravizada da cozinha contra a negra estuprada pelo senhor branco. A câmera que mostra a menina branca na relva. Os incontáveis planos em que, tomados pelo afã da reconstituição, o preto é pano de fundo, igualado na dramaturgia a uma tapeçaria na parede. O olhar que nos convoca à empatia com a menina branca estuprada, ao mesmo tempo que não faz o mesmo com a mulher negra. O olhar que filma as correntes despreocupado de que para um negro elas são tão massacrantes quanto uma Máscara de Flandres.
Ou seja, abjeto.
Exercício de imaginação: se Vazante estivesse focado no Holocausto, trataria os corpos dos judeus como paisagens sem agência tal como trata seus negros?
Disse parágrafos acima que o filme continha em si uma perversão. Aprofundando-a: o fato de que artistas brancos parecem não ter interesse em investigar o que já foi feito de errado no passado por outras pessoas brancas que tentaram, por meio do cinema, falar de vivências negras. Por exemplo, sinto que muitas dos senões que circundam Vazante já flutuaram há mais de trinta anos, quando Steven Spielberg lançou A Cor Púrpura (1986). Lá como cá filmes de diretores brancos legitimados pelo seu campo, cada um a seu modo; ambos reconstituindo um momento histórico; ambos com possibilidades tamanhas de acesso e trânsito a ponto de pautarem o debate: nos EUA temos mais ciência e acúmulo de debate público sobre A Cor Púrpura do que um As Filhas do Pó (The Daughters of Dust, 1991); no Brasil, mais Vazante do que Café com Canela (2017).
Muito do que foi dito à época da chegada de A Cor Púrpura nas salas norte-americanas levam a uma linha direta às violências de Vazante. E mesmo assim, não se aprende nem apreende nada? Um exemplo: o frutífero debate realizado pela Black Film Review na edição publicada no Verão de 1986 (Vol 2, nº 2). Sob a manchete de capa “Quatro críticas sobre A Cor Púrpura” e com o senso de humor para ironizar como o filme pautou a redação (“[Essas quatro críticas] São as últimas, prometemos – por enquanto”), a revista, que no período de pré-produção nutria uma expectativa positiva em relação ao filme, oferece diversos olhares críticos ao olhar impresso por Spielberg.
Destaco um trecho do texto de Earl Walter Jr., intitulado “One Man’s View” (“A visão de um homem”). “A Cor Púrpura expõe, de forma sensacionalista, divisões profundas nas vidas de famílias negras, trocando imagens negativas no atacado em sua busca por estatuetas do Oscar. É o único filme sobre uma família negra a alcançar o circuito comercial em pelo menos oito anos. Para onde mais podemos olhar de forma a equilibrar as imagens devastadores desse filme?” [3].
No Brasil de 2017 a pergunta é a mesma: para onde olhar? O longa-metragem, em especial aqueles que chegam aos cinemas, continua segregado. O curta, contudo, está aí como resposta possível de outras imagens de pessoas negras no cinema – imagens que partem e mergulham na dor, mas que não se contentam em diagnosticá-la; almejam ir além: é preciso ir além, oferecer porções extras de oxigênio.
“Para onde olhar?”. De uma coisa não tenho dúvidas: para um filme com o olhar de Vazante eu já não quero mais olhar.
[1] A ideia de espectador resistente é desenvolvida pelo pesquisador Manthia Diawara no texto O Espectador Negro – Questões Acerca da Identificação e Resistência, traduzido por mim nesse link. A pesquisadora bell hooks avançou nessa mesma linha, mas provendo um recorte adicional da mulher negra, no texto Olhar opositivo: Espectadoras Negras, traduzido por Maria Carolina Morais aqui.
[2] Descobri essa imagem em 2016 no curso “O negro na história da arte”, ministrado pela pesquisadora Renata Bittencourt, no Centro Universitário Maria Antônia. A pintura de Moulignon está catalogada em: http://www.musee-orsay.fr/fr/collections/catalogue-des-oeuvres/notice.html?nnumid=21131
[3] A edição completa, assim como todos os arquivos da Black Film Review, está disponível em: http://lrdudc.wrlc.org/BlackFilmReview/index.php
Heitor boa tarde,
me identifiquei bastante com o texto e achei-o escrito com bastante perspicácia, trazendo muitas questões que eu, estudante de cinema negro e periférico, envolto pelas realidades elitistas da área na academia, vinha pensando com perturbação. Agradeço por se comunicar comigo através desse texto. Comigo e com muita gente que vem pensando a respeito mas não escreve. É um texto que me motiva a também iniciar algum estudo nesse sentido.
Queria te perguntar sobre como encontrar a referência citada no texto, que sublinho abaixo: “edição 120 da Cahiers du Cinèma, o crítico e realizador Jacques Rivette estabeleceu um paradigma analítico para observar os gestos formais contidos em obras atravessadas por questões éticas” — onde encontro o texto completo?