por Heitor Augusto*
[Juro de pés juntos que não queria que a primeira crítica fosse sobre um filme de branco racialmente questionável, mas calhou de esse ser o primeiro filme que vi aqui no TIFF. Prometo que vai ter texto de filme de preto e de indígena]
Zombi Child é um I Walked With a Zombie em versão 2.0. Não está lá o racismo grosseiro de um filme B hollywoodiano dos anos 1940, mas sim o velhíssimo fascínio do Norte frente aos “quentes trópicos”, espaço simbólico – e inventado – sobre o qual são projetadas as fantasias coloniais. Vindo da França e de um realizador pelo qual tenho apreço – L’Apollonide – Os amores da casa de tolerância me pegou bastante à época –, Zombi Child (Criança zumbi) divide-se entre o mundo de cima e o mundo de baixo.
O de cima: a França, dias de hoje num colégio interno para crianças cujas mães e pais detém uma medalha de honra – são a elite da elite; o de baixo: Haiti em dois intervalos temporais (anos 60 e 80). De lá vem Mélissa, a única adolescente negra do colégio, e sua tia, uma mambo. E obviamente é do Haiti que também vêm: voduísmo, tambores, mistério, zumbis, exploração do trabalho na produção da cana de açúcar, rituais…
Após um estranho prólogo – não porque difícil de decodificar, mas sim por dar pistas a um espectador resistente que em algum momento a coisa ia azedar e que eu, um preto com uma credencial de crítico no peito, sairia frustrado –, Zombi Child promete algo. Há o professor branco questionando levemente os ideais republicanos sobre os quais a França moderna teria se constituído – ou melhor, teria se narrado; há o travelling inundado de rostos brancos, exceto o de Mélissa; há especialmente aquele contraplano da lousa branca, imensa, interminável, e também o comentário sobre essa molecada endinheirada e branca que pira num trap.
Então há alguma coisa ali. Há também um mashup de tipos de cinema que, me parece, é algo que constitui parte do universo de interesses de Bonello – Zombi Child é um filme de zumbi que encontra o filme de possessão que encontra o filme de paixão adolescente que encontra o filme de escola/amizades forjadas nas microcomunidades. Reconhecido isso, há algumas coisas pornograficamente patéticas. Cito uma: a jovem branca de coração partido – por que o Pablo, seu objeto de desejo e amor, é um não-branco/racialmente dúbio? –, ao tentar convencer a tia de Mélissa de que quer fazer um vodu, manda essa: “Pode o sofrimento ser hierarquizado?”
CÊ TÁ ME TIRANDO QUE EU VIVI PARA VER UMA PERSONAGEM BRANCA NUM FILME DE ARTE PRONUNCIAR UM DIÁLOGO QUE É PRIMO DO “SOMOS TODOS HUMANOS”!!!! [Aí quando uma pessoa preta tira onda de branco numa linguagem bem internética, as pessoas brancas ficam chocadas com o tom pouco elaborado e impaciente da tiração].
Cito outra: o desenvolvimento da personagem da tia, Katy. Veja bem: uma mulher haitiana negra, professora de francês e bastante orgulhosa de suas raízes. Há uma assertividade ali. Massa. Mas essa mesma mulher, por alguma razão inexplicável, rende-se aos apelos desesperados da menina branca apaixonada e ACEITA TORNAR-SE SUA MAGICAL NEGRO! Ela, até então guardiã de um conhecimento e ponte de comunicação com os mortos atravessados pelas tragédias naturais (e coloniais, ainda que Bonello passe ao largo delas), para sua vida, aceita a ninharia de mil euros e vai resolver problema de branco.
Ou seja, a rejeição a qualquer tipo de empatia pelas imagens Zombi Child passa estritamente pelo olhar. Em 1988, o pesquisador, professor e realizador Manthia Diawara escreveu um ensaio ainda relevante acerca da espectatorialidade negra – a versão traduzida está disponível aqui. Um momento chave está na análise da montagem da sequência do corte da barba em A cor púrpura (1985) e em algumas equalizações propostas pelo olhar de Spielberg (e do montador Michael Kahn).
Corta para 2019 e para o filme de Bonello. A sequência da “““possessão””” parece ter sido pensada pela mente de quem devorou algum diário de viagem escrito no começo do século 19 e preservado por algum museu colonial e etnográfico. Impressionante como o conceito de espectador resistente desenvolvido por Diawara mantém-se indispensável para que certas espectatorialidades – as negras – possam sair vivos de fantasias como as de Zombi Child.
No fim, a cada toque do tambor, a cada repique do quadril ou de ombros, eu, um espectador resistente, não conseguia parar de pensar: as escolhas formais apresentadas ao longo do filme não fazem com que Bonello tenha conquistado o direito de colocar aquele tambor ali. Uma voz dentro de mim gritava: TIRA ESSE TAMBOR DAÍ, ELE NÃO TE PERTENCE. VOCÊ NÃO ENTENDEU ABSOLUTAMENTE NADA.
Quiçá eu não deveria esperar muito de um país tão habituado a deslegitimar qualquer discussão ao redor de política identitária como gesto de “comunitarismo”.
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[Epílogo]
Sim, para você, pessoa brasileira preta que leu esse texto e encontrou semelhanças com As boas maneiras, você está certa, você está certo, pois elas existem. Seria possível articular uma reflexão colocando ambos os filmes em diálogo. Mas fazê-lo significa deixar de escrever sobre outros filmes.
Faço alguns brevíssimos apontamentos. Sem querer oferecer álibi a um ou a outro, sinto que o equívoco, o desrespeito e a leviandade do filme de Bonello são mais agudos que os do longa de Juliana Rojas e Marco Dutra, que por sua vez reproduz algumas violências tipicamente brasileiras – a personagem da Zuaa que vira uma mãe preta, o oferecimento da carne negra, o abandono da agência da personagem na segunda metade do filme.
Ambos compartilham o interesse pelo cinema de gênero, em particular o horror, e o tratamento prioritário desse flerte vem com o custo da machadada sobre vidas negras – as na tela e as que se relacionam com aquelas imagens. As boas maneiras tem uma marca mais forte do passeio por referências cinéfilas, enquanto Zombi Child se posiciona no trânsito entre gêneros cinematográficos.
Mas há outros filmes para ver e escrever – Blood quantum é um evento (filme indígena de zumbis!), Measure tem uma coisa forte de adolescência, dor e resiliência, Carne é uma experiência visual interessante cuja força é acentuada pelos relatos das personagens…
*Filme visto durante o 2019 TIFF – Toronto Film Festival